VIII. Das testemunhas

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     É importante, em toda boa legislação, determinar de maneira exata o grau de confiança que se deve dar às testemunhas e a natureza das provas necessárias para constatar o delito.

     Todo homem razoável, isto é, todo homem que puser ligação em suas idéias e que experimentar as mesmas sensações que os outros homens, poderá ser recebido em testemunho.

     Mas, a confiança que se lhe der deve medir-se pelo interesse que ele tem de dizer ou não dizer a verdade.

     É, pois, por motivos frívolos e absurdos que as leis não admitem em testemunho nem as mulheres, por causa de sua franqueza, nem os condenados, porque estes morreram civilmente, nem as pessoas com nota de infâmia, porque, em todos esses casos, uma testemunha pode dizer a verdade, quando não tem nenhum interesse em mentir.

     Entre os abusos de palavras que tiveram certa influência sobre os negócios deste mundo, um dos mais notáveis é o que faz considerar como nulo o depoimento de um culpado já condenado. Graves jurisconsultos fazem este raciocínio Este homem foi atingido por morte civil; ora, um morto já não é capaz de nada... Muitas vítimas se sacrificaram a essa vã metáfora: e muitas vezes se tem contestado seriamente à verdade santa o direito de preferência sobre as formas judiciárias.

     Sem dúvida, é preciso que os depoimentos de um culpado já condenado não possam retardar o curso da justiça; mas porque, após a sentença, não conceder aos interesses da verdade e à terrível situação do culpado alguns instantes ainda, para justificar, se possível, ou aos seus cúmplices ou a si próprio, com depoimentos novos que mudam a natureza do fato?

     As formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias nos processos criminais, ou porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz, ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos são feitos com solenidade e segundo as regras, e não precipitadamente ditados polo interesse; ou, finalmente, porque a maior parte dos homens, escravos do hábito, e mais inclinados a sentir do que raciocinar, fazem assim uma idéia mais augusta das funções do magistrado.

     A verdade, muitas vezes demasiado simples ou demasiado complicada, tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o respeito do povo.

     As formalidades, porém, devem ser fixadas, por leis, nos limites em que não possam prejudicar a verdade. De outro modo, seria uma nova fonte de inconvenientes funestos.
Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que não tem nenhum interesse em mentir. Deve, pois, conceder-se à testemunha mais ou menos confiança, à proporções do ódio ou da amizade que ela tem ao acusado e de outras relações mais ou menos estreitas que ambos mantenham.

     Uma só testemunha não basta porque, negando o acusado o que a testemunha afirma, não há nada de certo e a justiça deve então respeitar o direito que cada um tem de ser julgado inocente (11).

     Deve dar-se às testemunhas um crédito tanto mais circunspecto quanto mais atrozes são os crimes e mais inverosímeis as circunstâncias. Tais são, por exemplo, as acusações de magia e as ações gratuitamente cruéis. No primeiro caso, é melhor acreditar que as testemunhas mentem, porque é mais comum ver vários homens caluniarem de concerto, por ódio ou por ignorância, do que ver um só homem exercer um poder que Deus recusou a todo ser criado.

     Da mesma forma, não se deve admitir com precipitação a acusação de uma crueldade sem motivos, porque o homem só é cruel por interesse, por ódio ou por temor. O coração humano é incapaz de um sentimento inútil; todos os seus sentimentos são o resultado das impressões que os objetos causaram sobre os sentidos.

     Deve, igualmente, dar-se menos crédito a um homem que é membro de uma ordem, ou de uma casta, ou de uma sociedade particular, cujos costumes e máximas são em geral desconhecidos, ou diferem dos usos comuns, porque, além de suas próprias paixões, esse homem tem ainda as paixões da sociedade da qual faz parte.

     Enfim, os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos, quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime; porque o tom, os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes idéias que os homens ligam a suas palavras, alteram e modificam de tal modo os discursos que é quase impossível repeti-los com exatidão.

     As ações violentas, que constituem os verdadeiros delitos, deixam traços notáveis na maioria das circunstâncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam; mas, as palavras não deixam vestígio e só subsistem na memória, quase sempre infiel e muitas vezes influenciadas, dos que as ouviram.

     É, pois, infinitamente mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações, pois o número das circunstâncias que se alegam para provar as ações fornece ao acusado mais recursos para justificar-se; ao passo que um delito de palavras não apresenta, de ordinário, nenhum meio de justificação.

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