IX. Das acusações secretas

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     As acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e tornado necessário em vários governos, pela fraqueza de sua constituição. Tal uso torna os homens falsos e pérfidos. Aquele que suspeita um delator no seu concidadão vê nele logo um inimigo. Costumam, então, mascarar-se os próprios sentimentos; e o hábito de ocultá-los a outrem faz que cedo sejam
dissimulados a si mesmo.

     Como os homens que chegaram a esse ponto funesto são dignos de piedade! Desorientados, sem guia e sem princípios estáveis, vagam ao acaso no vasto mar da incerteza, preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que os ameaçam. Um futuro cheio de mil perigos envenena para eles os momentos presentes. Os prazeres duráveis da tranqüilidade e da segurança lhes são desconhecidos. Se gozaram., apressadamente e na confusão, de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali sobre o triste curso de sua desgraçada vida, bastarão para consolá-los de ter vivido?

     Será entre tais homens que encontraremos soldados intrépidos, defensores da pátria e do trono? Acharemos entre eles magistrados incorruptíveis, que saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros interesses do soberano, com uma eloqüência livre e patriótica, que deponham ao mesmo tempo aos pés do monarca os tributos e as bênçãos de todos os cidadãos, que levem ao palácio dos grandes e ao humilde teto do pobre a segurança, a paz, a confiança, e que dêem ao trabalho e à indústria a esperança de uma sorte cada vez mais doce?... É sobretudo este último sentimento que reanima os Estados e lhes dá uma vida nova.

     Quem poderá defender-se da calúnia, quando esta se arma com o escudo mais sólido da tirania: o sigilo?...
Miserável governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo em cada súdito e se vê forçado, para garantir a tranqüilidade pública, a perturbar a de cada cidadão!

     Quais são, pois, os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam as acusações e as penas secretas? A tranqüilidade pública? A segurança e a manutenção da forma de governo? É mister confessar que estranha constituição é aquela em que o governo, que tem por si a força e a opinião, ainda mais poderosa do que a força, parece todavia temer cada cidadão!

    Receia-se que o acusador não esteja em segurança? As leis são, então, insuficientes para defendê-lo, e os súditos são mais poderosos do que o soberano e as leis.
Desejar-se-ia salvar o delator da infâmia a que se expõe? Seria, então, confessar que se autorizam as calúnias secretas, mas que se punem as calúnias públicas.

     Apoiar-se-ão na natureza do delito? Se o governo for bastante infeliz para considerar como crimes certos atos indiferentes ou mesmo úteis ao público, terá razão: as acusações e os julgamentos, nesse caso, jamais seriam bastante secretos.

     Pode haver, porém, um delito, isto é, uma ofensa à sociedade, que não seja do interesse de todos punir publicamente? Respeito todos os governos; não falo de nenhum em particular e sei que há circunstâncias em que os abusos parecem de tal modo inerentes à constituição de um Estado, que não parece possível desarraigá-los sem destruir o corpo político.

     Mas, se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado do universo, minha mão trêmula se recusaria a autorizar as acusações secretas: julgaria ver toda a posteridade responsabilizar-me pelos males atrozes que elas acarretam.

     Já o disse Montesquieu: as acusações públicas são conformes ao espírito do governo republicano, no qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos. Nas monarquias, em que o amor da pátria é muito fraco, pela própria natureza do governo, é sábia a instituição de magistrados encarregados de acusar, em nome do público, os infratores das leis. Mas, todo governo, republicano ou monárquico, deve infligir ao caluniador a pena que o acusado sofreu, se ele for culpado.

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