XXXVI. De certos delitos difíceis de constatar

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     Cometem-se na sociedade certos delitos que são bastante freqüentes, mas que é difícil provar. Tais são o adultério, a pederastia, o infanticídio.

     O adultério é um crime que, considerado sob o ponto de vista político, só é tão freqüente
porque as leis não são fixas e porque os dois sexos são naturalmente atraídos um pelo outro (20).

     Se eu falasse a povos ainda privados das luzes da religião, diria que há uma grande diferença entre esse delito e todos os outros. O adultério é produzido pelo abuso de uma necessidade constante, comum a todos os mortais, anterior à sociedade; ao passo que os outros delitos, que tendem mais ou menos à destruição do pacto social, são antes o efeito das paixões do momento do que das necessidades da natureza.

     Os que leram a história e estudaram os homens podem reconhecer que o número dos delitos produzidos pela tendência de um sexo para outro é, no mesmo clima, sempre igual a uma quantidade constante. Se assim é, toda lei, todo costume cujo fim fosse diminuir a soma total dos efeitos dessa paixão, seria inútil e até funesta, porque o efeito dessa lei seria sobrecarregar uma porção da sociedade com suas próprias necessidades e com as dos outros. O partido mais sábio seria, pois, seguir até certo ponto o declive do rio das paixões e dividir-lhe o curso num número de regatos suficientes para impedir em toda parte dois excessos contrários, a seca e as enchentes.

     A fidelidade conjugal é sempre mais segura à proporção que os casamentos são mais numerosos e mais livres. Se os preconceitos hereditários os conciliam, se o poder paterno os forma e os impede ao seu capricho, a galanteria quebra-lhes secretamente os laços, mau grado as declamações dos moralistas vulgares, sempre ocupados em gritar contra os efeitos, omitindo as causas.

     Mas, essas reflexões são inúteis para aqueles que os motivos sublimes da religião mantêm nos limites do dever, que o pendor da natureza os leva a transpor.

     O adultério é um delito de um instante; envolve-se de mistério; cobre-se de um véu que as próprias leis se empenham em conservar, véu necessário, mas de tal modo transparente que só faz aumentar os encantos do objeto que oculta. As ocasiões são tão fáceis, as conseqüências tão duvidosas, que é bem mais fácil ao legislador preveni-lo quando não foi cometido do que reprimi-lo quando já se estabeleceu.

     Regra geral: em todo delito que, por sua natureza, deve quase sempre ficar impune, a pena é um aguilhão a mais. Nossa imaginação é mais vivamente excitada e se empenha com mais ardor em perseguir o objeto dos seus desejos, quando as dificuldades que se apresentam não são insuperáveis e quando não têm um aspecto bastante desencorajador, relativamente ao grau de atividade que se tem no espírito. Os obstáculos se tornam, por assim dizer, tantas barreiras que impedem nossa imaginação caprichosa de afastar-se delas, e que continuamente a forçam a pensar nas conseqüências da ação que medita. Então a alma se apega bem mais fortemente aos lados agradáveis que a seduzem do que às conseqüências perigosas cuja idéia se esforça por afastar.

     A pederastia, que as leis punem com tanta severidade e contra a qual se empregam tão facilmente essas torturas atrozes que triunfam da própria inocência, é menos o efeito das necessidades do homem isolado e livre do que o desvio das paixões do homem escravo que vive em sociedade. Se às vezes ela é produzida pela sociedade dos prazeres, é bem freqüentemente o efeito dessa educação que, para tornar os homens úteis aos outros, começa por torná-los inúteis a si mesmos, nessas casas em que uma juventude numerosa, viva, ardente, mas separada por obstáculos intransponíveis do sexo, do qual a natureza lhe pinta fortemente todos os encantos, prepara para si uma velhice antecipada, consumindo de antemão, inutilmente para a humanidade, um vigor apenas desenvolvido.

     O infanticídio é ainda o resultado quase inevitável da cruel alternativa em que se acha uma infeliz, que só cedeu por fraqueza, ou que sucumbiu sob os esforços da violência. De um lado a infâmia, de outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida: como não havia de preferir esse último partido, que a rouba à vergonha, à miséria, juntamente com o desgraçado filhinho'

     O melhor meio de prevenir essa espécie de delito seria proteger com leis eficazes a fraqueza e a infelicidade contra essa espécie de tirania, que só se levanta contra os vícios que não se podem cobrir com o manto da virtude.

     Não pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os crimes de que acabamos de falar. Eu quis indicar suas fontes e penso que me será permitido tirar daí a conseqüência geral de que não se pode chamar precisamente justa ou necessária (o que é a mesma coisa) a punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação.

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