Se bem que as leis não possam punir a intenção, não é menos verdadeira que uma ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de cometê-lo, merece um castigo, mas menos grande do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido.
Esse castigo é necessário, porque é importante prevenir mesmo as primeiras tentativas dos crimes. Mas, como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e a sua execução, é justo reservar uma pena maior ao crime consumado, para deixar àquele que apenas começou o crime alguns motivos que o impeçam de acabá-lo.
Deve seguir-se a mesma gradação nas penas, em relação aos cúmplices, se estes não foram todos executantes imediatos.
Quando vários homens se unem para enfrentar um perigo comum, quanto maior é o perigo, tanto mais procurarão torná-lo igual para todos. Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices, seria mais difícil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse executá-lo, porque o risco seria maior, em virtude da diferença das penas.
Há, contudo, um caso em que a gente deve afastar-se da regra que formulamos, e é quando o executante do crime recebeu dos cúmplices uma recompensa particular; como a diferença do risco foi compensada pela diferença das vantagens, o castigo deve ser igual.
Se tais reflexões parecerem um tanto rebuscadas, reflita-se que é importantíssimo que as leis deixem aos cúmplices da má ação o mínimo de meios possível para que se ponham de acordo.
Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os seus companheiros. Esse expediente apresenta certas vantagens; mas, não está isento de perigos, de vez que a sociedade autoriza desse modo a traição, que repugna aos próprios celerados. Ela introduz os crimes de covardia, bem mais funestos do que os crimes de energia e de coragem, porque a coragem é pouco comum e espera apenas uma força benfazeja que a dirija para o bem público, ao passo que a covardia, muito mais geral, é um contágio que infecta rapidamente todas as almas.
O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime, pois que ele não o conhece; e as leis descobrem-lhe a fraqueza, implorando o socorro do próprio celerado que as violou.
Por outro lado, a esperança da impunidade, para o cúmplice que trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados.
Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis, isto é, as convenções públicas, já não é fiel às convenções particulares.
Parece-me que uma lei geral, que prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela um crime, seria preferível a uma declaração especial num caso particular: preveniria a união dos maus, pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos; e os tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos em que se pode ter necessidade deles. De resto, seria preciso acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o banimento do delator.
É, porém, em vão que procuro abafar os remorsos que me afligem, quando autorizo as santas leis, fiadoras sagradas da confiança pública, base respeitável dos costumes, a proteger a perfídia, a legitimar a traição. E que opróbrio para uma nação, se os seus magistrados, tornados infiéis, faltassem à promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente em vãs sutilezas, para levar ao suplício aquele que respondeu ao convite das leis!...
Esses monstruosos exemplos não são raros; eis porque tanta gente só vê na sociedade política uma máquina complicada, na qual os mais hábeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho.
Eis também o que multiplica esses homens frios, insensíveis a tudo o que encanta as almas ternas, que só experimentam sensações calculadas e que, todavia, sabem excitar nos outros os sentimentos mais caros e as paixões mais fortes, quando estas são úteis aos seus projetos; semelhantes ao músico hábil que, sem nada sentir ele próprio, tira do instrumento que domina sons tocantes. ou terríveis.
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Dos Delitos e Das Penas
Non-Fiction"Dos delitos e das penas" é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros. Na época havia...