É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a confissão do crime, quer para esclarecer as contradições em que caiu, quer para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, mas do qual poderia ser culpado, quer enfim porque sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia.
Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de acordo. O direito da força só pode, pois, autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou culpado.
Eis uma proposição bem simples: ou o delito é certo, ou é incerto. Se é certo, só deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura é inútil, pois já não se tem necessidade das confissões do acusado. Se o delito é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Com efeito, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou.
Qual o fim político dos castigos? o terror que imprimem nos corações inclinados ao crime.
Mas, que se deve pensar das torturas, esses suplícios secretos que a tirania emprega na obscuridade das prisões e que se reservam tanto ao inocente como ao culpado?Importa que nenhum delito conhecido fique impune; mas, nem sempre é útil descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza.
Um crime já cometido, para o qual já não há remédio, só pode ser punido pela sociedade política para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela esperança da impunidade. Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude, se é provável que um cidadão prefira segui-las a violá-las, o juiz que ordena a tortura expõe-se constantemente a atormentar inocentes.
Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse nos músculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura é uma lei que diz: "Homens, resisti à dor. A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser, e o direito inalienável de vos defenderdes; mas, eu quero criar em vós um sentimento inteiramente contrário; quero inspirar-vos um ódio de vós mesmos; ordeno-vos que vos tomeis vossos próprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebrarão os ossos e vos dilaceração os músculos... "
Esse meio infame de descobrir a verdade é um monumento da bárbara legislação dos nossos antepassados, que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de fogo, as da água fervendo e a sorte incerta dos combates. Como se os elos dessa corrente eterna, cuja origem está no seio da Divindade, pudessem desunir-se ou romper-se a cada instante, ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos homens!
A única diferença existente entre a tortura e as provas de fogo é que a tortura só prova o crime quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas queimantes deixavam uma marca exterior, considerada como prova do crime.
Todavia, essa diferença é mais aparente do que real. O acusado é tão capaz de não confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir, sem fraude, os efeitos do fogo e da água fervendo.
Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora, se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer senão tomar, no momento, a via mais curta para evitar os tormentos atuais.
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Dos Delitos e Das Penas
Non-Fiction"Dos delitos e das penas" é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros. Na época havia...