Depois dos crimes que atingem a sociedade, ou o soberano que a representa, vêm os atentados contra a segurança dos particulares.
Como essa segurança é o fim de todas as sociedades humanas, não se pode deixar de punir com as penas mais graves aquele que a atinge.
Entre esses crimes, uns são atentados contra a vida, outros contra a honra, e outros contra os bens. Falaremos antes dos primeiros, que devem ser punidos com penas corporais.
Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidadãos estão no número dos grandes crimes.
Compreendem-se, nessa classe, não somente os assassínios e os assaltos cometidos por homens do povo, mas, igualmente as violências da mesma natureza exercidas pelos grandes e pelos magistrados: crimes tanto mais graves quanto as ações dos homens elevados agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus excessos destroem no espírito dos cidadãos as idéias de justiça e de dever, para substituir as do direito do mais forte: direito igualmente perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre.
Se os grandes e os ricos podem escapar a preço de dinheiro às penas que merecem os atentados contra a segurança do fraco e do pobre, as riquezas, que, sob a proteção das leis, são a recompensa da indústria, tornar-se-ão alimento da tirania e das iniqüidades.
Não mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em certas circunstâncias um cidadão deixe de ser um homem para tornar-se uma coisa que se possa pôr a prêmio.
Vê-se, então, a astúcia dos homens poderosos ocupada completamente com o aumento de sua força e dos seus privilégios, aproveitando todas as combinações que a lei lhes torna favoráveis. Eis o mágico segredo que transformou a massa dos cidadãos em bestas de carga; foi assim que os grandes acorrentaram escravos. É por isso que certos governos, que têm todas as aparências de liberdade, gemem sob uma tirania oculta. É pelos privilégios dos grandes que os usos tirânicos se fortificam insensivelmente, depois de se terem introduzido na constituição, por vias que o legislador negligenciou fechar.
Os homens sabem opor diques bastante fortes à tirania declarada; mas, muitas vezes, não vêem o inseto imperceptível que mina sua obra e que abre por fim, à torrente devastadora, uma estrada tanto mais segura quanto mais oculta.
Quais serão, pois, as penas reservadas aos crimes dos nobres, cujos privilégios ocupam tão grande lugar na legislação da. maior parte dos povos? Não examinarei se essa distinção hereditária entre plebeus e nobres é útil ao governo, ou necessária às monarquias; nem se é verdade que a nobreza é um poder intermediário próprio para conter em justos limites o povo e o soberano; nem se essa ordem isolada da sociedade não tem o inconveniente de reunir num círculo estreito todas as vantagens da indústria, todas as esperanças e toda a felicidade: como essas ilhotas encantadoras e férteis que se encontram no meio dos desertos terríveis da Arábia.
Quando fosse verdade que a desigualdade é inevitável e mesmo útil na sociedade, é certo que só deveria existir entre os indivíduos e em virtude das dignidades e do mérito, mas não entre as ordens do Estado; que as distinções não devem permanecer. num só lugar, mas circular em todas as partes do corpo político; que as desigualdades sociais devem nascer e desaparecer a cada instante, mas não perpetuar-se nas famílias.
Seja qual for a conclusão de todas essas questões, limitar-me-ei, a dizer que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do último dos cidadãos. A igualdade civil é anterior a todas as distinções de honras, e de riquezas. Se todos os cidadãos não dependerem igualmente das mesmas leis, as distinções deixarão de ser legítimas.
Deve supor-se que os homens, renunciando à liberdade despótica que receberam da natureza, para se reunirem em sociedade, disseram entre si: "Aquele que for mais industrioso obterá as maiores honras, a glória do seu nome passará aos seus descendentes; mas, não obstante as honras e as riquezas, não receará menos do que o último dos cidadãos a violação, das leis que o elevaram acima dos outros".
E verdade que não há assembléia geral do gênero humano em que se tenha aprovado semelhante decreto; este se funda, porém, na natureza imutável dos sentimentos do homem.
A igualdade perante as leis não destrói as vantagens que os príncipes julgam retirar da nobreza: apenas impede os inconvenientes das distinções e torna as leis respeitáveis, tirando toda esperança de impunidade.Dir-se-á, talvez, que a mesma pena, aplicada contra o nobre e contra o plebeu, torna-se completamente diversa e mais grave para o primeiro, por causa da educação que recebeu, e da infâmia que se espalha sobre uma família ilustre. Responderei no entanto, que o castigo se mede pelo dano causado à sociedade, e não pela sensibilidade do culpado. Ora, o exemplo do crime é tanto mais funesto quanto é dado por um cidadão de condição mais elevada.
Acrescentarei que a igualdade da pena só pode ser exterior, e não pode ser proporcionada ao grau de sensibilidade, que é diferente em cada indivíduo.
Quanto à infâmia que cobre uma família inocente, o soberano pode facilmente apagá-la com demonstrações públicas de benevolência. Sabe-se que tais demonstrações de favor têm foros de razão no povo crédulo e admirador.
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Dos Delitos e Das Penas
Non-Fiction"Dos delitos e das penas" é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros. Na época havia...