XXIV. Da medida dos delitos

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     Já observamos que a verdadeira medida dos delitos é o dano causado à sociedade. Eis aí uma dessas verdades que, embora evidentes para o espírito menos perspicaz, mas ocultas por um concurso singular de circunstâncias, só são conhecidas de um pequeno número de pensadores em todos os países e em todos os séculos cujas leis conhecemos.

     As opiniões espalhadas pelos déspotas e as paixões dos tiranos abafaram as noções simples e as idéias naturais que constituíam sem dúvida a filosofia das sociedades primitivas. Mas, se a tirania comprimiu a natureza por uma ação insensível, ou por impressões violentas sobre os espíritos da multidão, hoje, enfim, as luzes do nosso século dissipam os tenebrosos projetos do despotismo, reconduzindo-nos aos princípios da filosofia e mostrando-no-los com mais certeza.

     Esperemos que a funesta experiência dos séculos passados não seja perdida e que os princípios naturais reapareçam entre os homens, mau grado todos os obstáculos que se lhes opõem.

     A grandeza do crime não depende da intenção de quem o comete, como erroneamente o julgaram alguns: porque a intenção do acusado depende das impressões causadas pelos objetos presentes e das disposições precedentes da alma. Esses sentimentos variam em todos os homens e no mesmo indivíduo, com a rápida sucessão das idéias, das paixões e das circunstâncias.
Se se punisse a intenção, seria preciso ter não só um Código particular para cada cidadão, mas uma nova lei penal para cada crime.

     Muitas vezes, com a melhor das intenções, um cidadão faz à sociedade os maiores males, ao passo que um outro lhe presta grandes serviços com a vontade de prejudicar.

     Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela dignidade da pessoa ofendida, de preferência ao mal que possa causar à sociedade. Se esse método fosse aceito, uma pequena irreverência para com o Ser supremo mereceria uma pena bem mais severa do que o assassínio de um monarca, pois a superioridade da natureza divina compensaria infinitamente a diferença da ofensa.

     Outros, finalmente, julgaram o delito tanto mais grave quanto maior a ofensa, à Divindade. Sentir-se-á facilmente quanto essa opinião é falsa, se se examinarem com sangue-frio as verdadeiras relações que unem os homens entre si e as que existem entre o homem e Deus.

     As primeiras são relações de igualdade. Só a necessidade faz nascer; do choque das paixões e da posição dos interesses particulares, a idéia da unidade comum, base da justiça humana. Ao contrário, as relações que existem entre o homem e Deus são relações de dependência, que nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as coisas, a um senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao mesmo tempo legislador e juiz, somente ele pode ser a um tempo uma e outra coisa.

     Se ele estabeleceu penas eternas para aquele que infringiu suas leis, qual será o inseto bastante temerário que ousará vir em socorro de sua justiça divina, para empreender vingar o ser que se basta a si mesmo, que os crimes não podem entristecer, que os castigos não podem alegrar e que é o único na natureza a agir de maneira constante?

     A grandeza do pecado ou da ofensa para com Deus depende da maldade do coração; e, para que os homens pudessem sondar esse abismo, ser-lhes-ia preciso o socorro da revelação. Como poderiam eles determinar as penas dos diferentes crimes, sobre princípios cuja base lhes é desconhecida? Seria arriscado punir quando Deus perdoa e perdoar quando Deus pune.

     Se os homens ofendem a Deus com o pecado, muitas vezes o ofendem mais ainda encarregando-se do cuidado de vingá-lo.

Dos Delitos e Das PenasOnde histórias criam vida. Descubra agora