XXXV. Do suicídio

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     O suicídio é um delito que parece não poder ser submetido a nenhuma pena propriamente dita; pois essa pena só poderia recair sobre um corpo insensível e sem vida, ou sobre inocentes. Ora, o castigo que se aplicasse contra os restos inanimados do culpado não poderia produzir outra impressão sobre os espectadores senão a que estes experimentariam ao verem fustigar uma
estátua.

     Se a pena é aplicada à família inocente, ela é odiosa e tirânica, porque já não há liberdade quando as penas não são puramente pessoais.

     Os homens amam demasiado a vida; estão ligados a ela por todos os objetos que os cercam; a imagem sedutora do prazer e a doce esperança, amável feiticeira que mistura algumas gotas de felicidade ao licor envenenado dos males que ingerimos a grandes tragos, encantam muito fortemente os corações dos mortais, para que se possa temer que a impunidade contribua para tornar o suicídio mais comum.

     Se se obedece às leis pelo temor de um suplício doloroso, aquele que se mata nada tem que temer, pois a morte destrói toda sensibilidade. Não é, pois, esse motivo que poderá deter a mão desesperada do suicida.

     Mas, aquele que se mata faz menos mal à sociedade do que aquele que renuncia para sempre à sua pátria. O primeiro deixa tudo ao seu país, ao passo que o outro lhe rouba sua pessoa e uma parte dos seus bens.

     Direi mais. Como a força de uma nação consiste no número dos cidadãos, aquele que abandona o seu país para entregar-se a outro causa à sociedade o dobro do prejuízo que lhe pode causar o suicida.

     A questão reduz-se, pois, a saber se é útil ou perigoso à sociedade deixar a cada um dos membros que a compõem uma liberdade perpétua de afastar-se dela.

     Toda lei que não é forte por si mesma, toda lei cuja execução pode ser impedida em certas circunstâncias, jamais deveria ser promulgada. A opinião, que governa os espíritos, obedece às impressões lentas e indiretas que o legislador sabe dar-lhe; resiste, porém, aos seus esforços, quando são violentos e diretos; e as leis inúteis, que logo são desprezadas, comunicam seu aviltamento às leis mais salutares, que costumam ser vistas antes como obstáculos a vencer do que como a salvaguarda da tranqüilidade pública.

     Ora, como a energia dos nossos sentimentos é limitada, se se quiser obrigar os homens a respeitar objetos estranhos ao bem da sociedade, eles terão menos veneração pelas leis verdadeiramente úteis.

     Não me deterei no desenvolvimento das conseqüências vantajosas que um sábio dispensador da felicidade pública poderá tirar desse princípio; procurarei apenas provar que não é necessário fazer do Estado uma prisão.

     Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos a liberdade de abandonar seu país, seria uma lei inútil; porque, a menos que rochedos inacessíveis ou mares impraticáveis separem esse país de todos os outros, como guardar todos os pontos de sua circunferência? Como guardar os próprios guardas?

     O imigrante que leva tudo o que possui não deixa nada sobre que as leis possam fazer cair a pena com que o ameaçam. Seu delito já não pode ser punido, desde que foi cometido; e infligir-lhe um castigo antes que ele seja consumado, é punir a intenção e não o fato, é exercer um poder tirano sobre o pensamento, sempre livre e sempre independente das leis humanas.

     Tentar-se-á punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele deixa? Mas a conclusão, que não se pode impedir por pouco que se respeitem os contratos dos cidadãos entre si, tornaria esse meio ilusório. Além disso, semelhante lei destruiria todo comércio entre as nações; e, se se punisse o emigrado, no caso dele regressar aos país, isso significaria impedi-lo de reparar o prejuízo que causou à sociedade e banir para sempre aquele que uma vez se tivesse afastado da pátria.

     Enfim, a proibição de sair de um país só faz aumentar, em quem o habita, o desejo de abandoná-lo, ao passo que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem. Que se deve, pois, pensar de um governo que não tem outro meio senão o temor, para reter os homens em sua pátria, à qual eles estão naturalmente ligados pelas primeiras impressões da infância?

     A maneira mais certa de fixar os homens em sua pátria é aumentar o bem-estar respectivo de cada cidadão. Do mesmo modo que todo governo deve empregar os maiores esforços para fazer pender a seu favor a balança do comércio, assim também o maior interesse do soberano e da nação é que a soma de felicidade seja aí maior do que entre os povos vizinhos.

     Os prazeres do luxo não são os principais elementos dessa felicidade: embora impedindo as riquezas de se reunirem numa só mão, eles se tornam um remédio necessário à desigualdade, que toma mais força à medida que a sociedade faz mais progressos (18).

     Mas, os prazeres do luxo são a base da felicidade pública, num país em que a segurança dos bens e a liberdade das pessoas dependem exclusivamente das leis, porque então esses prazeres favorecem a população; ao passo que se tornam um instrumento de tirania para um povo cujos direitos não são garantidos. Assim como os animais mais generosos e os livres habitantes dos ares preferem as solidões inacessíveis e as florestas longínquas, onde sua liberdade não corre risco, aos campos alegres e férteis, que o homem, seu inimigo, semeou de armadilhas, assim também os homens evitam o próprio prazer, quando este lhes é oferecido pela mão dos tiranos (19).

     Está, pois, demonstrado que a lei que prende os cidadãos ao seu país é inútil e injusta; e o mesmo juízo deve ser feito sobre a que pune o suicídio.

     Trata-se de um crime que Deus pune após a morte do culpado, e somente Deus pode punir depois da morte.

     Não é, porém, um crime perante os homens, porque o castigo recai sobre a família inocente e não sobre o culpado.

     Se me objetarem que o medo desse castigo pode, contudo, deter a mão do infeliz determinado a morrer, responderei que quem renuncia tranqüilamente à doçura de viver e odeia bastante a existência terrena para preferir-lhe uma eternidade talvez infeliz, não se comoverá decerto com a consideração remota e menos forte da vergonha que o crime atrairá sobre sua família.

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