Calmaria

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— Quer parar de me olhar assim? - disse Alice, com irritação.

Lance suspirou, voltando a olhar para frente, onde sua lanterna iluminava precariamente os corredores de metal amassado, arranhado e coberto por tenebris e sangue.

— Eu estou bem. - insistiu Alice, passando por Lance com raiva no andar.

Mas isso era uma hipérbole. Mancava e andava devagar, ofegante, pela fraqueza que a acometia. Por enquanto, a adrenalina a mantinha de pé, mas, no instante que descansasse, não conseguiria mais ignorar todas as dores que percorriam seu corpo. Por enquanto só suas gengivas ainda incomodavam, mas não passava disso. Felizmente mais nenhum dente havia caído e não havia nenhuma hemorragia aparente além da natural. Por isso estava apressada para achar Endiblue. Do que menos precisava naquele instante era anemia e dores extras. Parou um pouco, respirando profundamente. As pontadas no pé da barriga a faziam querer parar e voltar. Lance deu-lhe um olhar sério, mas não falou nada, apenas continuou seu caminho. Se deixando levar pela teimosia, Alice continuou.

O silêncio tomava o ar, sendo interrompido às vezes pelo ofegar de Alice, que nem deveria estar caminhando, e pelos rangidos da própria estação em seu estado crítico. Os passos dos dois adultos pouco ecoavam em meio ao corredor silencioso. A roupa espacial era leve e compacta comparada com a de séculos antes, no início da corrida espacial, então a movimentação não ficava prejudicada. Os cilindros médios de oxigênio balançavam levemente com os movimentos de Alice. Lance, por outro lado, não tinha nenhum cilindro. Ser um tipo de mutante tinha algumas vantagens como ele já tinha notado, embora ele não soubesse da extensão dos danos que estava sofrendo.

Mas Alice sabia. Ela sabia que ele estava morrendo com essa versão distorcida de um câncer e, pelo modo cada vez mais agressivo com o qual ele tratava Ryan dia após dia, que sua mente pouco a pouco também desaparecia. Isso criava um clima desconfortável entre os dois, já que havia uma muralha de segredos os separando. Alice sabia algo sobre Lance e Lance temia que Alice não pudesse ser confiável após algo que ele notara enquanto ela estava inconsciente. Ele sabia que ela guardava um segredo que envolvia a tenebris. Como era a única que sabia a pesquisa toda, seria fácil para ela esconder informações deles. Lance não a conhecia de verdade, quem sabe o que ela esconderia por trás de sua determinação. Porém, apesar da atmosfera de desconfiança, nenhum ousava agir contra o outro em uma missão tão fundamental para os humanos quanto arranjar Celiatron.

O caminho era longo até a Secção Nordeste, a parte da Ala Norte conhecida, onde possivelmente se deparariam novamente com a neblina de pó amarelo que se movia pela estação. A impaciência os fazia querer correr, mas a precaução só permitia andar rápido. Logo viram a "neblina" surgindo em seu campo de visão e não ficaram tão surpresos, embora Alice tenha arfado levemente. Lance fechou o capacete, já que ainda não sabiam se esse pó teria algum efeito nele, e, juntamente com Alice, foi em direção às nuvem.

Caminharam alguns passos dentro da nuvem, ondas amarelas surgindo ao redor de seus corpos enquanto se moviam como se atravessassem uma piscina de bolinhas vertical. Pararam um pouco, à espera de qualquer catástrofe. Nada aconteceu. Só quando terminaram de passar por essa neblina que Alice notou que estava prendendo a respiração, tensa. Esperava o perigo a qualquer instante.

Olhou para frente. O falho portão da barreira de quarentena os aguardava, amassado. Ainda o mesmo. Déjà vu. Alice sentiu um arrepio na nuca e se virou para trás, mirando a escuridão como se esperasse ver três olhos vermelhos brilhantes. Felizmente não viu nada. Estava vazio. Vazio demais. E se conscientizar sobre esse fato teve o mesmo efeito de encontrar um monstro. Para quem tinha sido atacado repetidamente nos últimos dias por mutantes, tudo estava pacífico demais, como a calmaria que toma o oceano antes da tempestade que naufragará o barco.

Contágio: O terror no espaçoOnde histórias criam vida. Descubra agora