2.2. O bigode

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Após a morte dos pais, a família Silva Xavier entrou em um limbo. Apesar de possuir diversas posses e rendas, Domingos e Antonia deixaram também significativas dívidas, no açougue, no registro oficial de dívidas, nas promessas à caridade e a igrejas e até na padaria.

A lei do Privilégio da Trindade permitia que famílias que atuassem na mineração e possuíssem mais de trinta escravos escapariam da penhora por dívidas. Mas, após o falecimento dos responsáveis legais da família, a abertura do inventário revelou débitos a saldar na praça. A contagem oficial revelava que a fazenda do Pombal possuía apenas 28 escravos adultos, o que tornava os bens vendáveis para saldar os débitos familiares. E assim a fazenda foi vendida.

Após a morte do pai, Domingos Filho e Antônio se candidataram a seminaristas, na comarca de Mariana. Com ajuda da recomendação escrita pelo Padrinho Bigode, ambos conseguiram a vaga e deixaram a Comarca de São João del Rey.

Resolvida a situação dos dois filhos mais velhos, a seguinte na linha de sucessão era Maria Vitória, quatro anos mais velha que Joaquim. Ela teve a sorte de ir estudar em um centro acadêmico na cidade de Lisboa, considerado informalmente como centro laico de treinamento e controle de magia e combate às criaturas malignas. O menino não ouviu falar da irmã por muitos anos.

Joaquim foi morar com seu padrinho e tio, o cirurgião-dentista Sebastião Ferreira Leitão. O Sr. Leitão já havia ajudado a resolver a situação dos irmãos mais velhos: escreveu uma elogiosa carta sobre a origem familiar e moral impecável de ambos, o que os ajudou a conseguir a vaga no Seminário.

Sebastião era um senhor peculiar. Uma das suas características era ostentar um farto bigode, misto de branco e cinza, no rosto, o que lhe valia o nada original apelido de Bigode. O que chamava atenção do menino era que o tio gostava de ser chamado assim, tanto pelos cidadãos livres quanto por seus inúmeros escravos.

Solteiro, o padrinho possuía diversas lavras de mineração, e o jovem sobrinho transitava entre elas, e também passava tempo significativo na Vila de São João del-Rei. O padrinho também era reconhecido na comunidade por seu trabalho como cirurgião-dentista, ofício que ensinou ao menino desde cedo.

A prioridade do Bigode era ensinar a Joaquim os ofícios intelectuais. Começou pela alfabetização. Também ensinou matemática, geografia, história e artes clássicas – o tio era proprietário de grande coleção de livros de poesia, e gostava de debater as comédias de Camões, nas quais o amor vencia a tudo...

Nesse período, Joaquim perambulou por muitas ruas e casas, para aprender o ofício de "tira-dentes". Ele também começou a trabalhar, tanto em tarefas simples, como ajudar a carregar coisas, como em um ofício mercante, de trocas e vendas.

O menino comprava produtos agrícolas, como açúcar e café, nas fazendas, e revendia diretamente nas casas de conhecidos que eram apresentados por seu tio.

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Três anos haviam se passado, e apesar de perambular por vilas e fazendas com seu padrinho, o garoto não tinha mais ouvido falar dos vampiros. Em diversas ocasiões ele perguntou ao preceptor sobre o assunto, mas era tabu. Ele não sabia se ele fazia para protegê-lo, mas em mais de uma ocasião Joaquim pegou o tio em mentiras, e negação de algumas histórias.

- Ficaram na Europa - dizia os tios sobre os monstros - Aqui nestas terras são outros vilões que nos roubam. Os monstros estão no governo e na igreja! Sugam nossos recursos, mas não nosso sangue de forma literal.

Uma dessas experiências foi a cobrança do quinto. Joaquim nunca esqueceu aquela cena. Ele e Bigode estavam na Fazenda do Batota para comprar couro e carne curtida. O contratador, responsável pela cobrança de impostos, estava lá, acompanhado de seis escravos, e tinha vindo cobrar vinte por cento dos lucros da Fazenda. Ao alegar impossibilidade de pagar, Batota foi humilhado com xingamentos e ameaças vexaminosas.

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O Bigode tinha muitos livros, quase cinquenta, a maioria de cunho religioso. Nessa coleção, uma das obras favoritas de Joaquim era a História do Futuro, do Padre Antonio Vieira. falava sobre como Portugal viraria o império mais poderoso da Terra quando se livrasse dos vampiros. Alguns trechos foram considerados delírios heréticos. O padre foi preso e morreu devido às péssimas condições do cárcere.

Alguns trechos ressoavam com força na mente do jovem:

Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana batem às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas coisas das que são, e afetando impacientemente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demônio a conseguir que o homem lhe recebesse falsamente a sensação de imortalidade, criando de fato homens-demônios.

E, senão, pergunto: quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do demônio? Representações cultuadas, como o Apolo de Delfos, o Júpiter em Babilônia, o Juno de Cargago, a Vênus no Edito, a Dafne em Antioquia, o Orfeu em Lesbos, o Fauno na Itália e o Hércules na Espanha, mostram a aparição do falso profeta imortal da humanidade. E principalmente a materialização disso, em mortos sugadores de sangue, corresponde a uma abominação que precisamos extirpar.

Quem eram essas abominações sugadoras de sangue citadas pelo Padre? Só podiam ser os vampiros, e será necessário ler outros livros que trazem antídotos a esse mal.

Já na finalização da obra, o Padre Antonio Vieira escreve algo que bate forte na imaginação do menino. Um parágrafo com o que o futuro reservava a Portugal:

Vitória triunfal está reservada ao grande império português, terra cristã cuja fé e ciência avançam e permitem nova paz e triunfo do que se há de fazer cristão ao Mundo. Lembre-se outra vez Portugal da obrigação de limpar a terra dos sugadores de sangue demoníaco, e de quanto merece Cristo desse esforço, para a paz ser alcançada e a glória divina se derramar sobre os membros desta grande nação.

Cada releitura evocava calafrios e pensamentos sombrios no menino. Ele se imaginava liderando as forças de fé que limpavam a capital do império e sua colônia brasileira desta terrível corrupção.

***

Aos quinze anos, Joaquim recebeu um presente especial de seu tio: uma caixa de madeira, com tabuleiro quadriculado com oito casas na vertical e oito na diagonal. Dentro da caixa, dezesseis peças claras e dezesseis peças escuras, esculpidas em pedra-sabão. Era o xadrez, jogo usado pelo tio para debater filosofia e estratégia militar com o sobrinho.

Um dia, durante o treino, Joaquim afirmou descuidadamente:

- Tio, nós somos as peças brancas e vamos vencer as pretas, que representam o mal, né?

- Ora, pois, que tolice! Nós somos as brancas e as pretas. O bom jogador joga dos dois lados. O mal pode se disfarçar de todas as cores. Lembre-se sempre que depois da partida todas as peças, brancas e pretas, peões e reis, vencedores e perdedores, vão ser guardados na mesma caixa.

Uma valiosa lição.

Tiradentes Jovem contra os VampirosOnde histórias criam vida. Descubra agora