Prólogo

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~ Três anos antes ~

O dia se arrastava lentamente e entediada deitada no sofá da sala Ana decidiu que já era hora de levantar e arrumar a bagunça ao seu redor; a casa estava vazia e o silêncio a convidava para uma boa hora de sono, mas pensando na mãe que provavelmente demoraria a chegar pois àquelas horas já estaria adiantada em vários copos de cerveja, suspirou em desalento e levantou-se indo em direção a pequena lavanderia a procura dos itens necessários para começar o “martírio”.

Fez tudo no automático enquanto concentrava-se na letra da música que saía da casa ao lado, mas quando abriu a estante da sala encontrou algo que logo chamou sua atenção; era um antigo álbum de fotografia que ela já havia perdido as contas de quantas vezes tinha folheado. Sentou-se no chão deixando os panos e produtos de lado, e ao olhar as fotos sentiu as lágrimas subirem aos seus olhos vendo a si mesma ainda bebê no colo do seu pai.

Eram tantas fotos, momentos variados que estavam impressos na sua memória como se os tivesse vivido a alguns dias atrás e não anos.

Uma garotinha com a franjinha escura lambida na testa e as bochechas estufadas enquanto assoprava uma vela que indicava seus cinco anos de idade olhava para ela com os olhos esperançosos e felizes. Seus pais também sorridentes estavam cada um ao seu lado e seus amiguinhos ao redor da mesa a olhavam quase com inveja pela família feliz que a aniversariante tinha.

Ela era essa aniversariante e custou a acreditar que um dia havia sido tão feliz.
Os dedos correram lentamente pelos rostos dos seus pais e ela deixou que as lágrimas caíssem com liberdade enquanto lembrava da vida antes da morte e das bebidas terem entrado em sua casa e devastado tudo que um dia conhecia. Lembrou das noites em que seu pai a colocava para dormir e dos dias em que sua mãe a levava no parquinho da praça para que pudesse brincar com as outras crianças.

Ela a amava.

Apesar de tudo, das noites em que dormiu sozinha em casa nos últimos anos, das vezes em que a mãe chegou bêbada gritando com ela sem que tivesse feito nada; apesar de tudo isso, Ana sabia que era amada mas que em algum momento depois que o seu pai morrera sua mãe havia simplesmente esquecido como era demonstrar esse amor. Às vezes se perguntava se o que sentia pela mãe era raiva ou apenas mágoa, mas nunca em nenhum momento, considerou que havia deixado de amá-la. Mas ainda assim, sabia que se tivesse mais alguém da família a quem recorrer não estaria mais ali esperando que sua mãe percebesse que ela estava bem ao lado querendo ser amada.

Ao chegar na última foto, fechou o álbum com força batendo a porta da estante tentando inutilmente afastar aqueles sentimentos ruins da sua cabeça, e levantou-se de supetão disposta a terminar a faxina o mais rápido possível para ficar livre de tudo aquilo.
Ao chegar no quarto da sua mãe abriu o guarda roupa para verificar se estava tudo em ordem e foi surpreendida pelas inúmeras peças de roupa que caíram em cima dela quase que avisando que ali não era o melhor lugar da casa para mexer.

A contragosto começou a organizar as roupas velhas que pareciam estarem emboladas à dias, e ao olhar para cima deparou-se com algumas caixas antigas que ela não lembrava-se de já ter visto. A curiosidade falou alto demais para que ela conseguisse ignorar, e ao abrir uma das caixas encontrou um maço de papel amarrado com um laço amarelo.
Eram papéis de carta, velhos papéis de carta.

As páginas amareladas e amassadas indicavam que o que quer que fosse haviam sido escritos a muito tempo e depois haviam sido lidas e relidas com certa regularidade.

"Querida Eunice..."

As palavras lhe saltavam aos olhos antes que pudesse processá-las e os olhos arregalados e incrédulos passeavam pelas cartas numa grande velocidade.

"Ainda é difícil chamá-la de novo de mãe, mas a verdade é que tudo que eu queria era poder olhar nos seus olhos e dizer que mais uma vez você será avó. Sim, avó. E dessa vez de uma linda princesinha. Eu e Caroline decidimos chamá-la de Ana e foi com uma emoção indescritível que olhei em seus olhinhos miúdos podendo vislumbrar um pouco da senhora nela. Admito que quase imediatamente senti vontade de discar o número de casa (que eu ainda sei de cor) para lhe dar as boas novas. Mas não tive coragem. A mágoa ainda é grande demais para que eu possa deixar de lado e apenas lhe dar a oportunidade de ver esse pequeno pacote de amor que Deus nos enviou.

Espero que um dia tudo fique às claras, que as mágoas que ficaram impressas em meu coração se desvaneçam e eu consiga olhá-los novamente com admiração. Mas hoje, todo o amor que sinto falta está sendo preenchido pela minha própria família e pra mim isso já é o bastante.
Essa é só mais uma daquelas cartas que eu escrevi para a senhora mas nunca
enviei..."

Ana não queria acreditar, mas lembrando das conversas sussurradas que havia ouvido dos seus pais foi quase impossível não se convencer de que Eunice era sua avó. Aquela avó que não sabia que tinha. Aquela avó para quem podia ter se voltado na primeira noite que sua mãe chegou bêbada em casa quebrando tudo que via pela frente.
Aquela avó que desde pequena haviam lhe privado de conhecer.

Ela existia, talvez ainda estivesse viva, e Ana custava acreditar que seus pais haviam feito aquilo com ela.

— Como tiveram coragem?

Murmurou enquanto lia cada uma das cartas que nada mais eram que relatos das pequenas travessuras e dos momentos que havia protagonizado em sua infância. Seu pai detalhava cada momento em cartas que infelizmente não haviam sido enviadas, e olhando o endereço descrito em cada uma delas se perguntou se algum dia conseguiria perdoar seus pais pela vida que a impediram de ter.

Foi nesse momento que percebeu de alguma forma, que seu lugar não era mais ali.

Ela só não sabia exatamente onde ou quando encontraria 'o seu lugar'.

Descanso em Seu OlharOnde histórias criam vida. Descubra agora