Se tinha algo na rotina do circo que Ana não gostava era quando chegava seu fatídico dia de ajudar na "cozinha". Cozinhar era uma das poucas coisas que lhe ajudavam a espairecer quando ainda morava com a mãe, mas ali, numa cozinha totalmente improvisada, com pessoas que raramente se entendiam sobre o que comer uma vez que eram de várias partes do país, ela apenas encontrava uma razão a mais para se estressar.
Não entendia por que Mustafá não contratava pessoas para ficarem responsáveis apenas pela comida, como faziam nos circos "mais modernos", e o que amenizava sua descrença era que se as coisas estivessem muito corridas por lá, ele pelo menos se encarregava de comprar comida no restaurante mais próximo — o problema mesmo era a diferença entre o que os circenses entendiam como "corrido" e o que Mustafá parecia entender.
Ela não reclamava quando era chamada para ajudar, mas todo mundo sabia que ia totalmente contra sua vontade e talvez por isso fizessem questão de sempre chamá-la. Era a teoria que tentava explicar para Pietra que olhava para ela totalmente entediada.
— Eu já disse que essa sua teoria da conspiração não faz sentido. A escala é justa, você que resmunga demais.
Ana revirou os olhos com sarcasmo e se concentrou em lavar as mãos com o máximo de cuidado possível antes de ir em direção ao martírio que seria assumir mais um dia de escala.
— Que saudades daquela pilha de marmitex. Aquilo lá pra mim é a visão do paraíso.
Pietra gargalhou com vontade dirigindo à amiga um olhar de repreensão.
— Você não tem jeito, desisto de tentar colocar juízo nessa cabeça oca...
Enquanto caminhava para a cozinha, Ana soltou um beijo para a outra e curtiu o vento fresquinho que batia em seu rosto balançando os fios do cabelo castanho e liso que estava preso no topo da cabeça à espera da touca que logo seria colocada neles.
— Então hoje estamos juntas nessa? — Samila perguntou assim que ela atravessou a "porta", para alívio de Ana, sem o olhar de acusação que havia recebido na última discussão que tiveram.
— Parece que sim. Somos só nós?
Observou a colega acenar afirmativamente e começou a lavar os legumes que estavam sobre a bancada disposta a fazer o que a outra sugerisse, sorrindo aliviada em saber que não precisaria disputar o espaço com meia dúzias de pessoas.
Samila ao seu lado parecia alheia ao que ela fazia mas logo Ana percebeu seu olhar envergonhado quando ela virou-se prestes a lhe falar algo.
— Queria te pedir desculpas, não tinha que falar com você daquele jeito. Era só uma bebida, e eu sei que você sempre repõe. Não deveria ter falado o que falei.
Ana buscou oferecer seu melhor sorriso mostrando que não havia se ofendido pelas palavras proferidas por ela.
— Você não estava exatamente errada. Não deveria continuar pegando suas coisas sem avisar. — Balançou os ombros com indiferença e continuou seu trabalho com os legumes que nunca haviam parecido tão interessantes como naquela hora.
— A verdade é que eu não importo que você pegue as bebidas — olhou atentamente para Ana como se verificando que ela estivesse ouvindo cada palavra que dizia —, só me preocupo que isso vem acontecendo com muita frequência. Não é legal quando se torna um hábito.
Ana suspirou com um certo desconforto acenando positivamente para Samila mostrando que havia entendido, e continuou seu trabalho enquanto refletia mais uma vez no que sua colega de quarto havia lhe falado.
— Preparada para o dia de chef?
O semblante ansioso e sorridente de Samila conseguiu afastar o clima tenso que pairava pelo local e enquanto respondia afirmativamente, Ana aliviada viu o final da sua manhã ser preenchida de sabores, cheiros e sensações e teve um pequeno vislumbre dos bons sentimentos que tinha sempre que se arriscava na cozinha de sua mãe quando estava sozinha em casa.
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Descanso em Seu Olhar
SpiritualAs cores sempre tiveram um fascínio sobre ela e o circo conseguia reunir todas elas em um espetáculo que lhe tirava o fôlego na infância, e lhe apresentava novas oportunidades na juventude. Ana sabia bem o que queria: estar o mais longe possível de...