Capítulo Onze

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Apesar de ter passado muito tempo tentando decifrar a história por trás de Tiago e a garotinha, Ana havia ido deitar sentindo-se leve e quase, quase feliz. Caso alguém lhe perguntasse como imaginava que seria sua noite de sono, poderia até mesmo deixar-se levar pela ilusão que dormiria de forma tranquila, sem nenhuma interrupção como há muito tempo não dormia. Pelo menos não no seu trailer, por algum motivo, só conseguia ter uma noite de sono completa quando estavam na estrada — era como se enquanto o carro estava em movimento ela tivessse a sensação de estar à salvo.

Mas estaria errada, é claro.

A madrugada havia sido tão atribulada quanto as outras que a antecederam, e ao acordar, sentia como se tivesse sido atropelada por um caminhão carregado até o topo — o que não estava tão longe da verdade dado ao pesadelo recorrente.

Era sempre o mesmo pesadelo, a mesma história, o mesmo desespero que lhe fazia acordar chorando em agonia. Alguém diria que ela já deveria ter acostumado-se, pois via sempre a mesma imagem aterradora, mas a verdade, é que toda noite que o pesadelo se repetia, era como se fosse a primeira vez.

A cena era sempre igual: retornava à noite do acidente em que seu pai havia morrido mas ao contrário de estar inconsciente como de fato havia acontecido, no pesadelo ela levantava sem nenhum arranhão e podia ver com clareza seu pai já sem vida e sua mãe inconsciente. Todo o local ao redor do acidente era coberto por um espesso nevoeiro que a impedia de ver qualquer coisa além do carro destroçado, e dos seus pais - e isso incluía cada um dos ferimentos com uma nitidez impressionante.

Ferimentos que nunca havia esquecido, e que mesmo depois de tantas vezes sonhando a mesma coisa, ainda lhe dava calafrios.

No sonho, enquanto gritava por socorro sem que saísse da boca qualquer som, via o nevoeiro se dissipar aos poucos e dentro dele surgir um homem todo vestido de preto, com um chapéu que lhe impedia de ver seu rosto. Ela o olhava apavorada e quando ele a pegava no colo tudo que conseguia fazer era gritar, chorando em desespero enquanto era levada para longe dos seus pais. E era sempre neste exato momento que acordava aos gritos, e com a roupa encharcada de suor.

Talvez era por isso que Samila quase sempre não dormia no trailer. Devia ser assustador ser acordada por alguém aos gritos.

O resto do dia havia sido preenchido pelo mau estar que só aquele pesadelo podia lhe causar. Independente do que tentasse, o dia seguinte era sempre um terror que tentava esconder atrás do sorriso falso e amarelo.

— Já deu por hoje né? — Pietra chegou, tirando-a do seu esforço automático, falando de forma autoritária — Tem horas que está aí ensaiando sem parar, não comeu nada, não bebeu nada. Vai passar mal agorinha e eu não quero o trabalho de ter que te acudir. Não sou obrigada, a nada, aliás...

Ana suspirou com dificuldade sentindo os músculos tensos pelo esforço repetido, e limpou o suor do rosto com as mãos, esgotada o suficiente para não conseguir sorrir com o sarcasmo da amiga. A tarde estava chegando ao fim, e seria seguida por mais uma exaustiva noite de apresentações, o cenário perfeito para quem queria mais do que tudo, manter a mente ocupada.

— Você não me contou como foi a conversa com seu avô ontem a noite...

— Acabei indo direto pro meu trailer depois que eles foram embora, e hoje a gente quase não conversou.

— Foi por isso mesmo ou você estava fugindo mais uma vez?

Já estava acostumada com a insistência da amiga, mas às vezes tinha vontade de ter em suas mãos um botão de liga e desliga para poder silenciá-la quando desse vontade — naquele momento, por exemplo.

— Hoje não Pietra, não é um bom dia... — fitou-a por uns segundos antes de desviar o rosto evitando continuar o contato, pois sabia que corria o risco de desmoronar.

Descanso em Seu OlharOnde histórias criam vida. Descubra agora