Ana estava alerta desde que havia saído da pracinha deixando Rick para trás. Ainda sentindo dores pelo corpo e apreensiva com a possibilidade de encontrar Mustafá pelo caminho até seu trailer, tentou ser o mais discreta que conseguia — o que não foi suficiente para evitar todos os olhares curiosos certamente pela cena que tinha feito mais cedo.
A verdade é que ela sempre se arrependia de fazer as coisas por impulso e sabia que sair deixando Mustafá falando sozinho não tinha sido sua melhor decisão, mas ficar remoendo o leite derramado certamente não ajudaria em nada então apenas convenceu-se que tinha que deixar pra lá. "Quem sabe ele já até esqueceu daquilo?" Pensou, porém em seguida sorriu ironicamente da sua própria ingenuidade ao olhar para a tenda principal e ver o "patrão" parado apenas olhando-a.
Calculou a distância até seu trailer e percebeu que não daria para fugir do embate, por isso enquanto ele vinha em sua direção aparentemente soltando fogo pelas ventas, Ana decidiu implorar para que seu autocontrole aparecesse pelo menos daquela vez. Brigar com Mustafá duas vezes no mesmo dia, não seria nada bom.
— Você acha que tem passe livre para sair do ensaio quando quiser? — os olhos escuros e inquisitivos olhavam a moça de cima abaixo avaliando se ainda estava inteira depois da aventura do dia.
— Eu não conseguia ensaiar mais, e aquele número nem precisa de mais ensaios e você sabe disso. — Ana suspirou em desalento enquanto sentia o sangue ferver pela forma ameaçadora que ele a olhava.
— Quem decide se precisa de mais ensaios sou eu e não você. E não preciso falar nada sobre suas aventuras a noite...
Embora tentasse com afinco se controlar, Ana mal conseguiu impedir o riso de puro sarcasmo que saiu da sua boca.
— Não acho que para isso eu preciso da sua permissão. Não era hora de apresentação e nem ensaio, então entende-se que eu faço o que quiser da minha vida particular. — a sobrancelha formava um arco quase perfeito sobre seus olhos que faiscavam de raiva e ela cruzou os braços desafiadoramente enquanto observava Mustafá ficar ainda mais irado.
— Quando isso interfere no seu trabalho como hoje, passa a ser do meu total interesse. Não me faça perder a compostura — as mãos se fecharam ao redor do braço dela que naquele momento já tinha se virado para ir embora —, posso arrumar alguém para o seu lugar em um estalar de dedos, você não é especial...
A boca dele se ergueu em um sorriso carregado de escárnio fazendo Ana se encolher mesmo contra sua própria vontade e assim que ele soltou seu braço, ela saiu em passos largos sentindo os olhos arderem pelas lágrimas que se represaram ali. O braço ardia tornando impossível esquecer da sensação das mãos dele, e ela sacudiu a cabeça tentando inutilmente tirar aquelas palavras do pensamento.
Mas as palavras continuavam lá, como se fossem um veneno que havia se infiltrado na pele, e ela percebeu que no final das contas sabia que aquele sempre tinha sido o verdadeiro problema da sua vida: ela nunca fora especial. Seu pai, sua mãe, seus avós, todos eles certamente pensavam da mesma forma que Mustafá e era por isso que no final das contas ela sempre terminava o dia ali, perdida no meio do circo sem ter para quem voltar.
Enquanto os pensamentos rodeavam sua cabeça, permaneceu atenta às pessoas ao seu redor que a olhavam com curiosidade e quando percebeu Samila ao longe, agradeceu internamente por ter naquele momento o trailer só para ela.
Depois de muito ponderar sobre as palavras de Mustafá, chegou à conclusão que precisava de algo que lhe mantivesse ocupada, qualquer coisa que a impedisse de ficar se questionando sobre a vida; queria somente um momento de paz e sabia que encontraria isso em uma das caixas de sapatos de Samila — outro esconderijo da colega que ela conhecia bem.
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Descanso em Seu Olhar
SpiritualAs cores sempre tiveram um fascínio sobre ela e o circo conseguia reunir todas elas em um espetáculo que lhe tirava o fôlego na infância, e lhe apresentava novas oportunidades na juventude. Ana sabia bem o que queria: estar o mais longe possível de...