Capítulo Dois

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A cidade Monte Carlo já abrigava o circo Un Paradiso por cerca de três dias, o que fez com que estivesse na boca de todos os seus habitantes e também das cidades vizinhas. Cada noite de apresentação parecia mais cheia e movimentada que a outra e durante o dia os ensaios sucessivos tomavam todo o tempo dos artistas que corriam contra o relógio para integrar novos números às apresentações em tempo recorde; tudo por ordem de Mustafá.

Cada dia a mais que passavam naquela cidade parecia uma sessão de tortura para Ana; nos pouquíssimos e raros "tempo livre" que tiveram, não teve a mínima coragem de sair das proximidades do circo e mantinha suas preciosas cartas escondidas em um lugar bem secreto com medo de que fossem "encontradas por coincidência" por Pietra que desde que haviam chegado não deixava passar uma oportunidade de tentar convencê-la a ir atrás dos avós.

— O que acha de procurarmos a casa dos seus avós mais tarde? — Pietra havia deixado a proposta no ar, antes da apresentação daquela noite.

— Eu não vou aparecer tarde da noite na casa de alguém que nem me conhece...

Já virando as costas irritada, foi para seu trailer disposta a ignorar a amiga por quanto tempo fosse necessário. Aquele não estava sendo seu melhor dia, e a insistência de Pietra apenas deixava-a mais irritada; já era difícil lidar com seu próprio inconsciente que a acusava de covarde dia e noite, não precisava que ele recebesse uma 'mãozinha' da amiga.

— Você não pode fugir pra sempre. Sabe que um dia essa sua experiência com o circo irá acabar e você precisa ter pra quem voltar — a voz de Pietra soou receosa enquanto a seguia, com medo do que as suas palavras poderiam causar na outra — Você sempre terá a nós, a minha família, mas precisa também recuperar a sua.

— Não é tão simples e você sabe disso.

Vendo que a amiga não queria estender a conversa, Pietra a proposta de lado.

— Certo, não está mais aqui quem falou... Mas então o que acha de ir dormir no nosso trailer depois?

Ana conhecia aquela estratégia, sabia que por hora o assunto 'avós' estaria excluído da conversa, porém não para sempre. Mas ela queria o silêncio do seu trailer pelo menos naquela noite e por isso recusou o convite.

Depois que Pietra foi embora relutante deitou-se em sua cama improvisada ciente que tinha poucos minutos antes de precisar se arrumar para a próxima apresentação; sem conseguir conter sentiu as lágrimas represadas o dia inteiro saírem como em uma avalanche.

Outra vez o aperto no peito, a angústia, e aquela sensação de sufoco que sempre sentia pareciam estar cada vez maiores, e mesmo se esforçando para que ninguém percebesse, ia dormir chorando todos os dias.

Algumas vezes fingia não saber o motivo; em outras admitia ser saudades do seu pai e da sua mãe; mas quase sempre sentia o vazio causado pela incapacidade de encontrar amor aonde fosse. Às vezes se lembrava do pai lhe contando sobre o amor de alguém que ele acreditava ser Deus, e pensava se valia a pena buscar esse amor; mas porque era tão difícil acreditar que existia alguém por aí que a amava mesmo sabendo de todos os seus erros?

— Ana está aí?

— Sim, pode entrar.

Era Samila que provavelmente já queria se maquiar e vestir para a longa noite que teriam pela frente. Ana a viu colocando uma garrafa de vodka embaixo de sua cama improvisada antes de se virar e lhe dirigir um olhar preocupado.

— Ei, você está chorando?

Envergonhada por ter sido flagrada naquele momento de fraqueza, apenas balançou a cabeça dizendo que não era nada demais.

Descanso em Seu OlharOnde histórias criam vida. Descubra agora