A surra

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O caminho de volta à mansão foi feita em silêncio.
De vez em quando, Martina se atrevia a olhá-lo de canto. O maxilar trancado e o modo como posicionava o rosto, escorando na mão esquerda, a qual os dedos coçavam a barba com insistência, denunciando toda a raiva que estava sentindo e que tentava a todo custo não por pra fora.
Ela cruzou os braços num instinto de proteção e se concentrou na estrada estreita asfaltada.
Seu destino, dali para a frente, era incerto. Acreditar nas palavras dele era no mínimo, cair mais uma vez em amargura.
Quando entraram pelos portões da propriedade e Murilo estacionou o carro, Martina abriu a porta, na esperança de se livrar logo da presença dele, o que foi impedida pela mão forte, segurando com firmeza em seu braço.
___ Espera. - ordenou, torcendo corpo e pegando o envelope cinza no banco de trás, entregando a ela.
Martina franziu o cenho.
___ O que é isso?
___ O que me pediu há pouco tempo no saguão do aeroporto. - explicou.__ Vá para o meu quarto e me espere lá. Preciso dar alguns telefonemas e outras ordens aos seguranças.
Ela se virou um pouco, para fixar seus olhos amedrontados nele. Murilo tinha o poder de lhe deixar em pânico quando falava com mansidão, mas suas feições demonstrando o contrário. E no momento, sabia que a calma com que estava falando com ela se transformaria em ira quando cruzasse o caminho de Otávio.
__ O que vai fazer? Otávio não tem culpa de nada! - avisou.__ Eu que fui atrás dele pedindo para que me ajudasse!
__ Sabe, Martina, se não tivesse acabado de sair de um hospital com ameaça de perder meus filhos, eu lhe ensinaria uma lição para mostrar a quem você pertence!
__ Mas que droga, Murilo! Sempre com esse seu jogo de possessividade! - esbravejou.__É incapaz de entender que não tenho nada com ele! Que a única pessoa que me passou pela cabeça para pedir ajuda, enquanto você e aquela cobra da sua amante me arrebentavam inteira, foi Otávio! Somente ele poderia me colocar no mundo artístico, me dando uma chance de não morrer de fome num lugar desconhecido!
Perdeu, você, por acaso, algumas horas de seu sono, pensando em como eu estava me sentindo? Eu estou sozinha nessa! Não tenho com quem contar e Otávio foi o único que me estendeu a mão quando precisei. Não é justo que agora, pague por algo que fez por mim! - desabafou socando seu braço para que a libertasse de suas garras.
__ Para com isso! - ele ordenou.__ Quer passar mal novamente? Não vou fazer nada a ele, pelo menos por enquanto!
__ Se fizer qualquer coisa a ele, eu...
Murilo soltou o seu braço, agarrando com força seu maxilar, interrompendo a ameaça dela e
encostou seus lábios nos dela, falando com a voz baixa e ameaçadora.
___ Você o quê? Acha que sou algum idiota? Ele fez isso porque tem alguma intenção com você e eu não estou disposto a dividi-la com ele!
__ Não seja bobo, eu estou grávida! Acha que teria a coragem de dormir com ele, carregando seus filhos dentro de mim? Você me conhece tão pouco, Murilo, e mesmo lendo a carta não entendeu nada... - lamentou.
Ele não responde, apenas intensificou o olhar, que, correndo pela face dela parou em sua boca. Martina fechou os olhos, sabia o que iria acontecer. Ele afrouxou o aperto, passando a mão por seu pescoço, sentindo o sangue dela correr acelerado nas veias. Enterrou os dedos em seus cabelos, forçando os lábios de Martina a se juntarem aos seus.
O beijo duro, no início, deu lugar a maciez e conforme ela relaxava se deixando invadir por sua língua, o beijo se tornava cada vez mais sensual.
O coração dela disparado e cheio de amor, batia em união com Murilo, que também se sentia assim. Aos poucos, seus lábios se desgrudaram e ele encostou a testa na dela, respirando fundo.
___ Você não tem ideia do que faz comigo, Martina! - beijou de leve a ponta de seu nariz.__ Só quando estou ao seu lado me sinto tranquilo.
___ Murilo...para. - pediu.___ Sem falsas esperanças, por favor!
Ele se afastou. No ímpeto de ter recebido a notícia da morte de Luís Alberto, esqueceu totalmente, que precisava dar uma lição em Paula e para isso tinha que esperar até o dia seguinte.
Suspirou se afastando.
__ Tudo bem. Sobe. - o pedido soava mais como uma ordem.
Martina desceu do carro com as pernas bambas e caminhou apressada para dentro, subindo as escadas e fazendo o que ele tinha pedido, esperar em seu quarto.
Sentou na cama em posição de yoga e abriu o envelope, folheando o conteúdo, se dando conta que era o contrato original, que tinha assinado naquela manhã, do noivado, no escritório da mansão.
Por um tempo, ficou analisando o que aquilo significava.
Não entendia nada, a cada hora ou dia que passava, tudo ficava muito confuso e estranho.
Recolocou o contrato no envelope, ajeitando os travesseiros, se recostou neles, se encolhendo de lado. O perfume de Murilo impregnado nos tecidos, lhe fazendo lembrar de muitos momentos e o principal deles, sua primeira vez, naquela cama e todo o esforço de Murilo para conquistá-la.
Fechou os olhos, até que ouviu a fechadura da porta se abrindo.
__ Martina... Dormiu? - a voz dele era baixa.
Ela abriu as pálpebras para encontrar o rosto de Murilo.
__ Qual o significado de me dar o contrato original, Murilo?
___ Que a partir de hoje, está livre! Pode considerar o contrato cumprido.
Martina sentou, num salto, com raiva.
__ E porque não me deixou ir embora? Me trouxe do aeroporto só pra isso? Bastava rasgar essa porcaria!- estendeu a mão pegando o envelope e atirando aos seus pés.
Murilo sentou calmamente, na beira da cama, pegou seu rosto com as mãos e o percorreu, parando nos olhos castanhos.
___ Fui te buscar porque não sei mais viver sem você! - confessou em tom suplicante.
Martina sorriu irônica.
___ Mais uma de suas brincadeiras...saiba que sexo está fora de cogitação por uns dias, recomendação da Paloma, portanto, não gaste o seu latim tentando me impressionar!
Uma risada amarga veio do fundo da alma de Murilo.
___ Estou sendo sincero. Tudo o que fiz foi porque te amo demais! Cada vez que fizemos amor depois de estarmos separados, foi como me agarrar a própria vida!
Martina gargalhou sarcástica.
___ Deus me livre deste tipo de amor! Você só pode ser louco! Depois de tudo o que você e Paula me disseram e de todo o sofrimento que me fizeram passar?!
Saltou da cama, tentando ir apressada para a porta.
___ Não quero ouvir mais nada!
Murilo a segurou com força pela cintura, fazendo com que perdesse o equilíbrio. Ele a sustentou.
___ Vai sentar aqui e vai ouvir sim!- usou as palavras imperiosas, para fazê-la escutar. __ Chega de desencontros, chega de mal entendidos, chega! - desabafou.
Martina puxou as pernas para cima da cama, as abraçando e por mais que dissesse que estava livre, não era tão fácil se livrar das correntes que lhe amarravam a Murilo. Seu medo era de que, lhe dando ouvidos, fraquejasse mais uma vez.
Murilo respirou para achar as palavras certas.
___ Não quero te perder, Martina. Quero que tudo volte ao normal...
__ Normal? Nosso casamento nunca foi normal! - rebateu.
___ Espera! Deixa eu falar. Lembra que uma certa vez, me disse que tinha dado graças por ter sido eu a ter lhe comprado?
Ela assentiu com a cabeça, levantando o olhar.
___ Então, eu a livrei de um destino bem pior do que está vivendo agora. Talvez, já estivesse até morta. - puxou seu IPhone, abrindo a galeria de fotos, mostrando a de um homem a ela.
___ Conhece este homem?
Martina correu os olhos pela tela.
___ Já o vi várias vezes, na casa se meu pai.
___ Sabe o nome dele?
___ Não sei. - parou o olhar. __ Só sei que cada vez, que me encontrava, ele me comia com os olhos. Ele me dava medo!
___ Era a ele que seu pai devia todo aquele dinheiro. Luis Alberto Rodrigues queria você como pagamento!
Martina levantou a cabeça diante daquela declaração, abriu a boca para falar, mas fechou, quando Murilo fez um gesto para que ela esperasse.
___ Seu pai me procurou, desesperado...Luis Alberto era um assassino frio....Usava as garotas, estuprava e mesmo quando não as matava, as vendia para redes de prostituição de outros países... - Murilo foi contando cada detalhe da história, cada manobra dele para livrá-la das garras de Luís Alberto.___ Por fim, quando casamos, achei que estaria segura comigo e que um filho meu manteria qualquer maluco longe de você, por respeito a minha família.
Martina derramava algumas lágrimas, no fundo, teve que admitir que até seu pai tinha sido generoso com ela.
___ Por isso mantinha sempre seguranças comigo?- inquiriu, passando a ponta dos dedos sob os olhos, fungando o nariz.
___ Sim. Estava lidando com bandidos, assumi o compromisso de cuidar de você... naquele momento era só segurança mesmo. Eu só não contava que viesse a me apaixonar perdidamente. Na minha cabeça era só desejo, conquista...
Martina arregalou os grandes olhos castanhos.
___ Como assim? Você sempre teve Paula na sua vida!
___ Desde o seu aniversário, ano passado, inconscientemente, eu já te amava... Fiz tudo isso por você!
___ E então, depois descobriu que tinha cometido um erro? Porque o que não entendo foi a sua traição com Paula?
Murilo passou as duas mãos pelo rosto, respirando fundo e continuou, contando sobre a chantagem e de como Paula tinha lhe obrigado a dizer todas aquelas coisas horríveis, naquela tarde no iate...
Martina passou a mão pelos cabelos, tentando assimilar aquela história absurda. Murilo quis se aproximar para abraçá-la, mas ela se esquivou.
___ E agora, então, pelo que entendi estou livre, ele morreu! E Paula e você... - respirou.__existiu aquela cena que presenciei no quarto dela? Você e ela...transaram?
___ Não existe eu e Paula, nunca existiu e nem vai existir! - as mãos dele tocaram-lhe o rosto, limpando os vestígios das lágrimas.__ Eu só quero que entenda que fiz e ainda tenho que fazer algo que não vai lhe agradar muito, mas será apenas até amanhã à noite. Nunca toquei em Paula depois que casei com você!
Só quero que acredite em mim, em tudo que estou lhe contando e que me perdoe por tudo!
Martina mordeu o lábio inferior.
___ Não sei. - o olhou com dúvida. __ Preciso pensar. O que acontecerá comigo se acreditar em você? Já mentiu uma vez...
Ele a cortou impaciente.
___ Acabei de dizer que fui obrigado a isso!
___ A história é muito estranha. Como vou confiar novamente? - apertou ainda mais os braços ao redor dos joelhos.
___ Amanhã à noite, terá a prova que precisa para poder me dar uma nova chance. Pela última vez, eu peço, confia em mim, por mais estranho que eu aja com você quando estiver com Paula no mesmo ambiente.
Martina sorriu com tristeza, em se tratando de Murilo, a desconfiança não a abandonava, porém, não tinha nada a perder. Daria esta chance a ele.
___ Como vou saber se estou realmente livre desse casamento? Quero garantias legais que não terei que entregar meus bebês, caso esteja mentindo novamente.
Murilo se abaixou, pegando o envelope do chão, retirando uma folha, em meio às outras, entregando a ela.
__ Leia! - pediu.__ Está assinada por mim e registrada em cartório.
Tratava-se de uma declaração, anulando todas as cláusulas contratuais daquele casamento.
___Se me perdoar e acreditar que eu te amo de verdade, voltará pra mim como uma mulher livre!
Martina passeou os olhos pelo papel, levantando a cabeça, fixou-se nos olhos negros dele.
___ Eu aceito esperar até amanhã, mas com uma condição: de que Otávio não seja alvo de sua ira, por favor!
___ Tudo bem! Por mais raiva que tenha dele, vou fazer o que me pede. Uma vez, me disseram que relacionamentos, só dão certo se cada um ceder um pouco. Eu quero muito que tudo dê certo entre a gente, Martina. E eu sei que você também quer, o conteúdo da carta...eu sei que você me ama e eu também te amo, só preciso me livrar de uma vez por todas de Paula.
Hoje, eu vejo que foi um erro ter te trazido para cá.
___ Como vai fazer isso, se livrar dela? E ontem? Eu estou confusa, Murilo!
___ Acalma seu coração, faz parte plano. Vou desmascará-la na frente de meus pais.
Ele levantou, um sorriso de alívio no rosto e lhe estendeu a mão para que levantasse também.
___ Quer comer alguma coisa? Foi tanta correria que tenho certeza que os dois aqui- se abaixou, beijando e encostando o rosto em seu ventre.___ devem estar com fome!
Martina sentiu seus olhos se encherem novamente e enterrou os dedos em seu cabelo negro o apertando contra si.
___ Só peço que não brinque comigo de novo, Murilo, eu não suportaria tamanha dor! - pediu.
Ele levantou e lhe abraçou tão apertado que ela se sentiu sufocar.
___ Prometo que, desta vez, será para sempre. Eu te amo de verdade, meu amor!
Algum tempo depois , enquanto Martina tomava banho e seus pensamentos viajavam por sua cabeça, tentando ligar os pontos de conversas e de cada ato que Murilo teve com ela naquele pouco tempo de casamento, chegou a conclusão que ele pudesse sim estar falando a verdade. Murilo sempre agiu com ela como um homem apaixonado.
Saiu do banho e vestiu apenas calcinha e camiseta.
Sorriu com serenidade quando o viu entrar com uma bandeja com suco e algumas fatias do bolo de cenoura com cobertura de chocolate que Suelen tinha preparado.
___ Suelen mandou. Disse que você saiu à tarde, salivando por uma fatia. - depositou a bandeja em cima da cama.
___ Vai ficar em casa hoje à noite? - ela indagou, mordendo um pedaço do bolo, lambendo a ponta dos dedos.
___ Porque quer saber? Quer minha companhia?- ele sentou ao seu lado, ajeitando os travesseiros nas costas, ligando a televisão.
___ Melhor não. Vai que Paula bata na porta...
___ Não vai bater. Ela tem uma amiga que surta cada vez que briga com o noivo... está lá com ela. Acabou de me avisar que não volta pra casa hoje.
O clima entre eles tinha dado uma melhorada.
Ficaram assistindo alguns programas até que ela pegou sono, aconchegada nos braços de Murilo e quando acordou na manhã seguinte, havia um bilhete no travesseiro.
"Depois de muito tempo afastado, ter você dormindo serena em meus braços, me fez ver que valeu a pena ter ido contra meus princípios. Valeu a pena ter lutado por você! Eu te amo!"
Martina sorriu lânguida. Estava apostando suas últimas fichas nele, também teria que lutar para fazer tudo dar certo.
O amava demais para desistir sem ao menos dar a chance à ele de cumprir o que estava prometendo em relação à Paula. A segunda chance também era pelos bebês!

UM TEMPO PARA AMAR 1° Lugar na Categoria, Cena Dramática #CDouradosnaliteraturaOnde histórias criam vida. Descubra agora