Recuperando terreno

5K 458 59
                                    

Já era madrugada alta e Martina, sentada numa poltrona, à beira da janela, observava a escuridão lá fora, pelos pequenos vidros quadriculados.
Parecia estar dentro de um pesadelo que não conseguia acordar. A imagem dos dois, naquele quarto, persistia em lhe atormentar a mente. Suelen a deixou no atelier sob protestos, mas tinha sido um pedido seu. Queria ficar sozinha.
A luz fraca do abajur iluminava a sala, onde os cavaletes, com as telas e alguns quadros já prontos foram amontoados num canto, para dar lugar a mesa onde iriam jantar. Tinha preparado tudo com todo o seu amor.
Remoendo sua agonia, os olhos pararam no par de sapatinhos brancos, ao lado do prato na cabeceira da mesa, lugar destinado a Murilo.
Com a visão turva pelas lágrimas, que derramavam sem parar, levantou pegando a caixinha em que eles estavam. Abriu a caixa e os retirou. Tão pequeninos e delicados! - concluiu. Como ele teria reagido a notícia, se a amasse de verdade? Tinha criado tantas expectativas sobre aquela noite e agora, tudo parecia irreal.
Era para ter sido mais uma das noites felizes como as outras que tinham tido juntos, no entanto a magia de contar sobre a sua gravidez se desfez, arrebentando seu coração e sua alma. Sentou novamente e apertou os sapatinhos contra o peito. Subiu as pernas e se encolheu na poltrona, virando o rosto, chorando ainda mais um pouco, até que o cansaço a fez pegar no sono.
Acordou sobressaltada com a figura de Suelen, delineada na janela, batendo, num dos vidros.
Ela levantou, fazendo uma careta de dor. Dormir encolhida ali, tinha acabado com suas costas!
Mas quem se importa quando a dor do coração é maior do que tudo que possa se quebrar no meu corpo? - pensou deprimida. Abriu a porta para a amiga.
__ Como está?- a pergunta foi retórica. __ Sei que não está bem, mas precisa se alimentar. Vamos comigo, preparo algo para você!
__ Não posso, Su! Não poderei encará-los de novo! Ficar cara a cara com os dois só me faria sofrer mais. - murmurou, já com lágrimas nos olhos.
__ Ainda é muito cedo. E hoje é sábado, esqueceu? Eles não descem para sair.
__ Verdade, acabei esquecendo isso. - disse limpando os olhos. 
__ Vamos, não pode ficar sem se alimentar! -  Suelen falou enérgica com ela. __ Tem uma criança aí dentro, que precisa crescer. Anda, prometo que ninguém vai te encontrar lá! - tranquilizou Suelen.
Martina exitou por um instante, ponderando e a cozinheira completou:
__ Você não tem que temê-los. Seu Murilo lhe deve uma explicação! Ele deveria se envergonhar de ter feito isso com você! Se não precisasse tanto deste emprego, ele iria ouvir umas verdades!
__ Me explicar o que, Su? Murilo não me deve nada. Quando casei, sabia de tudo. Não nos casamos porque estávamos apaixonados. Ele me comprou! - confessou o segredo que até agora, só 3 pessoas que não eram de sua família sabiam: Ana, Dra Paloma e Paula. 
Suelen fixou o olhar em Martina, como se não estivesse entendendo o que ela queria dizer.
__ Sei que é difícil de entender, mas vou te contar tudo. Promete que não vai falar para ninguém? - pediu com calma na voz.
Suelen puxou uma cadeira e sentou a sua frente.
__ Então me conta, porque pra mim, está falando grego!
Martina contou tudo, desde o momento que o conheceu, dos jogos de sedução, dos momentos em que ele dizia que a amava, as desconfianças sobre Paula querer seu filho para ela...Suelen então soube o porquê dela ter se apaixonado perdidamente, por ele, ao ponto de se entregar sem medir as consequências.
Suelen levou a mão a boca, incrédula, gesto que sempre repetia e que já era uma marca sua.
__ Martina, que horror! Como seu pai pode fazer isso com você? E seu Murilo, que safado! Já tinha ouvido falar da fama dele, mas fazer esse  jogo sujo, é demais pra minha cabeça!
Martina continuou:
__ Entendeu porque vou ter que aguentar calada? Eu não poderia ter engravidado, Su! Eles vão me tirar essa criança assim que ela deixar de mamar no meu peito. Só então, a dívida estará totalmente paga!
__Já vi essas loucuras em filmes, novelas.. Como podem achar que uma criança pode ser negociada desta forma? Brincar assim com os sentimentos das pessoas? D. Carmem jamais concordaria com isso!
__As coisas independem dela. Assinei um contrato e a única chance que tinha para criar meu filho, seria Murilo ficando comigo, mas ele nunca me amou, Su! Não deu certo!
__ Deus do céu! Nem posso imaginar o que esta sentindo.
__ Depois que tiver esta criança não sei o que farei da minha vida, provavelmente, nem mãe eu terei mais. Se sair da cidade para não encontrá-los juntos e felizes, ficarei longe do bebê!  
Suelen levantou lhe estendendo a mão.
__ Vamos sair daqui, ainda é muito cedo para ficar pensando assim desse jeito.  Muita água pode rolar ainda debaixo desta ponte! - Suelen procurava lhe deixar tranquila.
Martina limpou os olhos, marcados pelo inchaço do choro, sentia-se tão infeliz que não comia desde a tarde anterior; não sentia fome, mas seguiu o conselho da amiga.
Saíram para fora e Martina se surpreendeu com mais dois seguranças perto da casa.
__ Cadê Ramon?- indagou à Suelen. 
__ Ainda não chegou. No sábado, ele chega mais tarde. Esses dois são contratados novos e vão fazer sua segurança, ordens do seu Murilo. Um deles me disse.
__ Pra que isso? Na certa está com medo que lhe pague na mesma moeda? Homem só teme mesmo é o chifre!
__ Não sei  porque deles aqui, mas vou descobrir. Lá dentro, daquela casa, serei seus olhos e seus ouvidos. Fica tranquila.
Caminharam devagar até a mansão e entraram pela porta dos fundos. Suelen trancou a porta que dava acesso à sala.
__ Vou fazer café com leite pra você. É mais nutritivo. Quer torradas também?
__ Só café, obrigada! Depois, como uma fruta. - sentou à cabeceira da mesa. __ Preciso subir, tenho que tomar um banho, mas temo que ele esteja no quarto.
Enquanto tomavam o café e conversavam, a fechadura foi forçada. Martina levantou num salto, largando a xícara na pia. Não queria ver ninguém. Sua aparência era péssima e aparecer assim diante de qualquer um deles a deixaria pior ainda. Vendo seu desespero, Suelen fez sinal para ela se esconder na despensa.
Suelen abriu a porta da cozinha. A voz insuportável de Paula se fez ouvir.
__ Bom dia, Suelen! - cumprimentou correndo os olhos pela cozinha, como um cão farejador, parando na xícara, na pia.__ Vejo que já preparou o café. Arrume tudo numa bandeja.Eu e Murilo vamos tomar café lá em cima. Leve para o meu quarto, por favor!
__ Sim, senhora! - Suelen se virou para abrir um armário tirando as xícaras.
A outra com ar superior continuou:
__ Não precisa se preocupar como almoço. Vamos almoçar fora também.Depois que ajeitar tudo aqui, pode ir embora.
__ Como quiser, D.Paula! - Suelen assentiu, temendo que ela entrasse na pequena despensa.
__ A propósito...por acaso, viu Martina hoje? - indagou com olhar desconfiado.
__ Não senhora, mas quando saí de casa, tinha luz acesa no atelier.
Paula pegou uma das torradas que estavam no prato em cima da mesa, mordendo e encarando Suelen.
__ Melhor assim. Peça a arrumadeira que transfira todas as roupas de Murilo da suíte principal para o meu quarto. 
Suelen fez uma cara de espanto e a reação da megera, como Bia a tinha chamado, foi imediata.
__ Está surpresa com o que? Achou que ele era fiel? - sorriu sarcástica. __Murilo nunca deixou de me amar, mais cedo ou mais tarde, isso iria acontecer! Você não sabe da missa o terço! - seu olhar era de deboche.
__ Desculpa, fiquei surpresa sim, mas não tenho nada a ver com isso! Estou aqui para trabalhar.
__ Que bom que entende bem, qual o seu lugar nesta casa e o lugar de Martina de hoje em diante. Não demore com o café, por favor!
Se virou fechando a porta atrás de si. Suelen a trancou novamente. 
Martina saiu da despensa e sua aparência que já não era boa, agora, estava pior. Seus olhos afundaram nas órbitas e estava branca como um papel.
Suelen se assustou.
__ Senta aqui, respira fundo, inspira...
Martina foi fazendo o que ela disse, mas as ânsias de vomito assolaram seu corpo e ela saiu para fora, se escorando na parede para vomitar a maçã que tinha acabado de comer.
Suelen a ajudou a se sentar novamente.
__ Martina, ela viu a xícara na pia. Sabia que você estava aqui, por isso disse aquilo.
__Ela falava a verdade. Murilo não deixaria levar suas roupas pra lá se fosse um blefe!
__ Só acho uma coisa, se você não enfrentar de cabeça erguida, a megera passará em cima de você como um trator. Olha só o que ela fez agora e como você ficou! Suba e vá tomar banho! Tudo tem um começo e a hora de reagir é agora!
__ Não posso!  - murmurou.
__ Pode sim! O que não pode, é deixar ela se achar aqui dentro. A casa é sua, mesmo que não esteja com seu Murilo, D. Carmem confiou a você! Assuma seu papel de dona e ponha ela no lugar, que é de sua hóspede, seu Murilo gostando ou não! 
Empurrou a amiga para fora da cozinha.
__ Suba lá e se arrume. Fique linda! 
Martina respirou fundo e seguiu rezando para não ter nenhuma surpresa, encontrando os dois pelo corredor.
Cruzou em frente ao quarto de Paula e tudo estava no mais absoluto silêncio. Entrou rápida, no seu quarto e trancou a porta.
Parou no meio, olhando em volta, deitou para aliviar um pouco, a indisposição, na cama macia, de costas para a porta.
O cheiro dele no travesseiro chegou até suas narinas. Podia sentir a sua presença se fechasse os olhos por instantes. Se encolheu e chorou novamente, lembrando do quanto foi feliz ali, escutando as mentiras que ele dizia no seu ouvido cada vez que se amavam ou depois, quando já estavam satisfeitos. Inacreditável como ele fingia bem! Todo aquele jogo de conquista, a lua de mel... para depois fazer isso com ela! - pensou com tristeza.
Ficou um tempo deitada, pensando em como levaria sua vida dali para frente. Não seria fácil, ainda mais com uma criança envolvida. Pensou na mãe, repetia-se a história. Um casamento que só traria ressentimentos e dor.
Um leve barulho a fez se virar e seus olhos pousaram na última pessoa que gostaria de encontrar. Murilo estava parado no batente da porta do closet, lhe observando há alguns minutos. 
__ Que está fazendo aqui? - indagou se levantando rapidamente, disfarçando o choro.
Ele não respondeu de imediato, como se estivesse escolhendo as palavras que usaria com ela. Aquele silêncio momentâneo a deixou mais enervada. Ele tentou se aproximar. Martina recuou. Nada do que ele dissesse mudaria a situação deles.  
__ Nem pense em chegar perto de mim. Nunca, mais vai tocar em fio de cabelo meu!
__ Fala baixo, ninguém precisa saber que estou aqui. O quarto ainda é nosso e estou trocando de roupa!Estava no closet quando entrou.
Martina riu sarcástica.
__ Não se preocupe, a partir de hoje, seu quarto será ali, no corredor, mais precisamente na porta a esquerda! Era de lá, que sentia falta todo esse tempo que esteve comigo! Paula já pediu que a arrumadeira levasse tudo o que é seu para o quarto dela! - largou as palavras, se odiando, por dar a ele o gosto de ver como estava sofrendo com aquilo.
__ Não fala besteira! Acha que vou sair daqui por causa de Paula?
__ Se não sair, saio eu! Vocês dois decidam de uma vez! Não temos mais nada!
__ Não tem nada a decidir! E temos sim, o contrato ainda está valendo, tem que engravidar e bebês não são feitos  por telepatia! - a alertou avaliando a cada palavra, sua reação.
Martina desviou o olhar, passou por ele, indo ao banheiro, parou na entrada.
__ Achei que ao menos pudesse ser menos cruel em relação a uma criança, gerada nestas condições... Mas esperar o que de uma pessoa que não respeita a própria palavra que empenhou!? - trancou a porta se escorando nela.
A voz do outro lado se fez ouvir.
__ Acredite, nunca quis te magoar desta forma! Foi inevitável!
Ela não respondeu, apenas foi descendo as costas chorando, até ficar sentada no chão.
Inevitável...- ela sorriu irônica em meio a tristeza do que aquelas palavras significavam. __ Inevitável, deixar de amar a prima!
O silêncio se fez ouvir, era sepulcral. Martina percebeu, então, que ele não estava mais ali do outro lado.
Levantou, tomou um banho, deixando água morna lavar o corpo e a alma e quando saiu, vestida apenas com roupão, o quarto estava vazio, apenas  o perfume dele no ar.
Penteou os cabelos, vestiu uma calça jeans e uma blusa verde escura e desceu se cuidando para não ser vista por nenhum deles.
Quando cruzou a sala passando pelo escritório, Paula apareceu na sua frente de surpresa.
___ Nossa!! Que cara horrível! -cutucou.
Martina baixou a cabeça fazendo a  menção de passar por ela, a última coisa que queria era discutir. Sua cabeça doía. Só queria sair dali o mais rápido possível.
Paula  a impediu.
___ Pode sair da minha frente? - pediu.
___ Qual é Martina? Eu sei que é difícil, mas eu avisei, lembra? Não vai adiantar fazer esta cara de coitada. Murilo detesta mulheres choronas...
Martina sabia que o que ela dizia era verdade. Respirou fundo, procurando uma paciência que não tinha em estoque.
A outra continuou:
___ Achou que ele iria ficar com você, né? - fez uma cara de piedade. ___ Tanta felicidade...Tia Carmem te paparicando... Murilo a defendendo... Imagina se sua sogra souber que você é uma prostitutazinha, que se vendeu para a família não ficar pobre!
Martina nem raciocinou, quando viu, sua mão já tinha deixado a marca dos cinco dedos na cara de Paula, fazendo com que torcesse o pescoço para o lado, devido a força do tapa. O estalo ecoou no corredor e Martina sentiu sua mão doer.
A expressão de surpresa de Paula era impagável, jamais pensou que Martina revidasse daquela forma.
___ Sua louca! - passou a mão no rosto.
___ Louca e sem paciência nenhuma pra ficar te aturando! Se me ofender de novo vai levar mais um e com muito mais força! E sai da minha frente! - a empurrou contra a parede e passou.
Seu corpo inteiro tremia. Saiu porta a fora indo direto para o atelier, apressada.
Ramon a seguiu, ela diminuiu o passo.
__ Martina! - ela se virou limpando as lágrimas.
___Suelen me contou o que aconteceu... quer conversar? Estou aqui pra te ajudar?
___ Estou bem. - o que de todo não era uma mentira, calar a boca de Paula  tinha sido bom. __ Vai passar...  sempre passa! Obrigada, mas no momento só quero me deitar e esquecer. Vou dormir, passei a noite em claro, estou exausta física e emocionalmente.
___ Eu sei como é...já passei por isso, quero dizer não desta forma..mas a dor da separação é a mesma.
___ A dor da traição é horrível! Me sinto um lixo, uma idiota que se deixou levar pela sedução. - desabafava enquanto caminhavam até chegarem a porta da edícula.
___ Vou ficar por aqui. Às 14 horas troca a segurança. Fica tranquila é um segurança novo, não vá se assustar, faz mal para o bebê. Seu Murilo sabe que está grávida? O que pretende fazer?
Martina sorriu triste, levando a mão ao ventre.
___ Por enquanto ainda não, mas terei que contar... No momento vou pensar só no meu filho. Daqui a alguns meses, eu decido o que fazer da minha vida.
___ Faz bem. Vai descansar, minha amiga!
Martina abriu a porta e se virou.
__ Ramón! - o chamou. __ Obrigada!
Ele sorriu compreensivo.
Ela fechou a porta atrás de si, olhando o ambiente.
Pegou o par de sapatinhos e levou consigo até o quarto, colocando em cima da mesa de cabeceira.
Ainda ficou assim um tempo, pensando em tudo, até que adormeceu.
__ Martina! - uma mão a sacudia. __ Acorda!
Martina abriu os olhos, em confusão, não reconheceu o lugar onde estava.
___ Suelen, que horas são?
___ Estamos na metade da tarde. Você não almoçou. Trouxe comida.
___ Obrigada, estou mesmo com fome.
___ Seu Murilo perguntou por você, tive que dizer que estava aqui. Ele me pediu para trazer algo para você comer.
Martina passou a mão pelos cabelos desgrenhados, tentando ajeitá- los e levantou.
Foram então, para a sala, onde ela se serviu de um pedaço de torta de legumes.
Na primeira garfada sentiu o sabor maravilhoso do tempero de Suelen  e apeteceu comer mais um pouco, por fim, enquanto conversavam, a porção foi toda sem ela perceber.
Martina fez então, a pergunta que estava remoendo desde a chegada da cozinheira ali.
__ Os dois saíram para almoçar, Su?
__Só vi a bruxa. Seu Murilo comeu o que você esta comendo. Ele que pediu para fazer.
__ Mas ela disse que eles iriam almoçar fora! - argumentou.
__ Isso foi o que ela falou...Ela queria era te atingir, só isso!
Martina confessou:
__ Encontrei ela no corredor da biblioteca, quando desci, perdi minha paciência, Su! Ela me ofendeu e eu meti a mão naquela cara nojenta!
Suelen não pode conter o riso e até ela caiu na gargalhada.
__ Você fez isso?
__ Fiz, me chamou de prostituta e eu agi como uma, sem classe, descendo do salto. Porque paciência tem limites!
Suelen a olhou fixamente, ficando seria de repente.
__ Ele parecia preocupado... não sei , o semblante de seu Murilo, estava diferente...Não comeu nem a metade do que serviu no prato!
__ Deve ser culpa, por ter me enganado todo esse tempo. Se é que ele conhece isso!
Martina sorriu com tristeza.
__Amanhã é domingo, não gostaria de te deixar sozinha, mas temos um almoço na casa de amigos... se quiser pode vir conosco?
__Obrigada, mas vou ficar por aqui. Talvez, eu acabe saindo de casa, indo ao cinema... sei lá, dou um jeito. Não quero atrapalhar vocês!
Depois que Suelen saiu, Martina recolheu o que havia sujado e desmanchou a mesa, levando para a cozinha novamente. Recolocou um dos cavaletes no lugar, correndo os olhos para achar seu avental, já um tanto manchando de tinta.
Amarrou os cabelos num coque solto e começou a criar. Em seus momentos de mais estresse e tensão, era quando suas obras saiam melhores.
A todo instante, a imagem de Murilo insistia em povoar seus pensamentos, enquanto o pincel não dava trégua. Foi despertada pelo som do seu telefone. Olhou o número, era Ana.
__ Olá, tudo bem, Ana? Como está minha mãe?
__ Está bem, não se preocupe. Sai uns minutos. Diego está com ela. Estou preocupada com você. Ramon me ligou.
Martina suspirou profundamente.
___ As coisas não saíram com planejei, Ana...Minha cabeça tá tão pirada que acabei esquecendo de te ligar...estou grávida.
___ Que notícia boa, Martina!
___ De um todo, ruim, não é, porém agora, vai ser um tempo para enfrentar o que está por vir. Eu e Murilo acabamos tudo ontem, foi horrível!
___ Ramon me falou...
___ E você sabe o que isso significa , né?
___ Sei, o contrato... Acha que ele terá coragem de fazer isso? Tirar seu filho, te expulsar da vida dele assim, depois de tudo o que viveram?
___ O contrato foi assinado para isso. Na verdade, só posso contar com uma pessoa pra me ajudar...Eu estive pensando... minha sogra.
___ Acha que ficaria ao seu lado e contra Murilo?
___ Ela é mãe. Com certeza, vai me entender. Não posso abandonar meu bebê assim, eu já amo a sementinha que está aqui.
___ Não vejo a hora de voltar e ao menos a gente poder conversar
melhor. Sabe que precisa se cuidar né? Se alimentar, tentar dormir bem..
___ Eu sei de tudo isso, mas está sendo difícil.
___ Já conversou com ele a respeito do bebê?
__ Não. Acho que vou esperar o que der para contar.
__ Eu entendo. Está na mansão agora?
__ Estou pintando no atelier. Ficarei  sozinha amanhã, Suelen vai sair.
___Eu gostaria de estar aí, com você.
Conversaram sobre o tratamento de Suzana e Martina desligou. Já começava a escurecer.
Precisava ir até a mansão para pegar alguma coisa para preparar para comer.
Já se achava com mais coragem depois de ter enfrentado Paula pela manhã.
Saiu fechando a porta . Os dois seguranças se levantaram de onde estavam sentados conversando.
__ Não precisa me seguirem.
__ Desculpa senhora,  mas são ordens.
Martina bufou e saiu caminhando firme na frente.
Enquanto se aproximava, percebeu as luzes da sala, acesas. Entrou pelos fundos, mas para poder subir ao quarto teria que passar inevitavelmente pela sala. Abriu devagar a porta.
Murilo estava encostado no bar com  um copo de whisky na mão.
Ele se virou quando a viu. Os olhos negros percorrendo sua figura. Martina queimava sob aquele olhar.
__ Achei que não voltaria de lá. - disse com um tom irritado.
Que direito ele tinha de se sentir irritado? - pensou, enquanto atravessava a sala.
___ Só vim buscar alguns objetos pessoais e comer. Estou bem lá. Ao menos, o ambiente não está empestiado com seu cheiro!
Ele foi atrás dela, a agarrando pelo braço. Ela o olhou com desprezo.
__ Me larga! O fato de ter assinado aquele maldito contrato, não te dá o direito de me machucar. Murilo afrouxou o aperto.
__ Desculpa, estou nervoso.
__ Não deveria, sobe lá, com a sua amante e se desestressa. Devem ter rido muito as minhas custas, né? A garota ingênua, virgem que caiu na sua lábia. Eu odeio vocês dois! Odeio ter que conviver sob o mesmo teto com uma pessoa desprezível como você!
Assim que fechar o tempo do contrato vou embora deste lugar, não quero nem o pó desta propriedade nos meus sapatos!
Murilo a encarava, não como das outras vezes, que tudo virava em desejo, mas com o olhar triste.
__ E se estiver grávida, não vai querer ver seu filho?
___ Ele por enquanto é meu...- parou. __ quero dizer, ele será meu enquanto estiver na minha barriga, depois, seu e de sua amante! Foi para isso que teve tanto trabalho até agora!
Se desvencilhou dele subindo apressada, se trancando no quarto.
Caminhou de um lado para o outro tentando manter a calma, suava frio. Foi até ao banheiro e juntou alguns pertences pessoais  numa mochilinha, tomou um banho e desceu, indo para a cozinha.
Apenas o copo vazio na mesa da sala denunciava que ele estivera ali.
Abriu a geladeira em busca de alguma coisa para comer. Havia um prato pronto que provavelmente, estava descongelando. Leu a etiqueta na embalagem." Tortillas de Patatas"
Ai que delicia! Aposto que  Suelen preparou pensando em mim. - concluiu em pensamento.
Abriu o forno elétrico e acionou o botão, em cerca de 15 minutos estaria comendo. Só de pensar no sabor das Tortillas sua boca salivava.
Enquanto esquentava, preparou uma salada de alface para acompanhar e um suco de limão. Estava acabando de por seu prato à mesa, quando a porta se abriu. 
__ Ora, ora... a mocinha se virando na cozinha. - se dirigiu a geladeira abrindo.
__ Por acaso, você pegou o que pedi para Suelen preparar para o jantar e está esquentando?
__ Claro. A única coisa disponível pronta que tinha aí!
__ Pois já vou avisar. Sua vez de comer será depois. O pedido foi meu, portanto, você vai esperar!
Martina a encarou, não acreditando no que ela seria capaz de fazer aquilo.
__ As Tortillas são suficientes para mais de 4 pessoas! - informou.
__ Garota, quando vai aprender que não me sento à mesa com prostitutas, a menos que seja obrigada!
Nesse momento, Murilo apareceu na porta.
__ O que está acontecendo aqui, Paula?
__ Sua esposa, vai ter que comer depois, expliquei que não vou sentar à mesa com ela.
Martina correu os olhos para um e depois, para o outro, ouvindo Murilo por panos quentes nas loucuras de Paula.
__ Paula, pelo amor de Deus, as coisas estão como você quer, portanto, vamos comer todos juntos como pessoas civilizadas que somos.
Martina ensacou a mão na luva de pano, grossa e abriu o forno, retirando o prato com as Tortillas.
__ Também acho, Murilo, só que na verdade, eu que não vou ficar aqui, disputando comida com os cachorros, bom proveito! - sem cerimônia nenhuma o prato estilhaçou no chão.
Martina sorriu vitoriosa.
__ Bon apétit, mon amour! Não esqueçam de jogar fora o que sobrar. Os cachorros da mansão só comem ração. Boa noite!
Paula diante daquilo, olhou para Murilo com muita raiva.
__ Esta garota é insuportável! Olha só o que ela fez?
Murilo sorriu em deboche.
__ Você pediu Paula, você levou! Se não pode com a formiga ....Dá um jeito de limpar essa sujeirada toda aí! Os empregados estão de folga.
Paula inchou de tenta raiva.
__ Ela sujou, ela que limpe!
__ Eu? Óbvio que não! Mesmo não tendo mais nada com Murilo, ainda sou a dona da casa, até que Carmem me tire a autoridade aqui dentro! Quem mora de favor aqui é você, nada mais justo que colabore com a limpeza! Boa noite!
Martina abriu o armário, pegou um saco de biscoitos e saiu, sua raiva era imensa. Sabia que passar por tudo isso não era bom, porém estava sentindo o gostinho do deboche indescritível
Sua boca salivava de vontade de comer as Tortillas, mas estava satisfeita.
__ Aguenta aí, baby. Amanhã comeremos todas as Tortillas que temos direito, num shopping na cidade. Por hoje, biscoitos servem!
Seguiu o caminho iluminado pelas lâmpadas espalhadas por entre os arbustos. Os seguranças a vigiavam de longe! Minutos depois que entrou, seu telefone tocou. Murilo na tela.
__ O que é, agora?- indagou com impaciência.
__Vai ficar sem jantar. Vou pedir alguma coisa pra gente, quer incluir algo no seu pedido?
__ Quero, sim. Uma dose de veneno pra você e uma dose de veneno pra Paula. Brindam e bebam.Vai para o inferno!!
__ Mal educada!
__ Traidor! Eu te odeio! - Martina não pode segurar as lágrimas depois destas palavras
Martina esperou a resposta que não veio. Ela desligou o telefone. 
Sentou na poltrona, abrindo saco de biscoitos, na pressa nem notou que eram de chocolate. Comeu alguns, eram muito doces e seu estômago se revirou. Saiu para fora para respirar um pouco de ar, encostada na parede.
Um dos seguranças se aproximou. 
__ A senhora está bem?
__ Estou um pouco tonta apenas. - já pondo a mão na boca.
As ânsias de vômito a sacudiram, pondo para fora o que tinha caído no estômago.
__ A senhora quer ajuda? 
__ Não, obrigada. Já está passando. - respirou um pouco mais fundo, sorriu para disfarçar e entrou.
Na falta do sono, procurou seus estojo com grafite e acomodou a folha branca na mesa de desenhar. Aos poucos, o rosto de um bebê se delineava, sob as mãos talentosas dela, no papel. Os traços tomavam forma e instintivamente, misturavam os seus traços com os de Murilo.
Absorta em sua imaginação, com os fones de ouvido, tocando uma música calma, ela sombreava perfeitamente a face sobre a folha. Desenhar ou pintar lhe transportava para um outro mundo e não percebeu a porta se abrir e a figura  morena de Murilo as suas costas, observando o que ela fazia com muito talento.
Ele se aproximou, estendeu o braço e tocou seus cabelos, soltando a piranha que os prendiam, eles caíram pesados sobre os ombros de Martina e ela se assustou, levantando rapidamente, esbarrando em seu corpo, ficando entre ele e a mesa. Estavam tão perto que podiam sentir suas respirações.
Martina tremeu diante da figura máscula, parando os olhos nos lábios bem feitos e macios, que pareciam terem sido feitos para despertar desejos e dar prazer quando a tocava.
Se recriminou por aqueles pensamentos.
Ele te traiu, Martina! - uma voz interior a repreendeu.
Ela o empurrou, porém em vão.
__ O que faz aqui? - se virou puxando uma outra folha sobre o desenho para escondê-lo. Sentiu quando ele afastou seus cabelos para o lado com as pontas dos dedos, deixando à mostra seu pescoço delicado. Sentiu sua respiração ali, ela se arrepiou toda, paralisando, e seu corpo inteiro reagiu, internamente, ao mesmo tempo em que a cena do quarto vinha à tona em seus pensamentos. Ela  fechou os olhos e respirou para buscar forças para resistir ao modo como lhe tocava
___ Murilo, por favor... - suplicou - acha que pode chegar assim, me seduzir e me magoar novamente?  Eu não vou permitir que isso aconteça mais. - a voz saiu fraca.
Ele se afastou percebendo a mágoa dela.
__ Sinto muito por tudo! Sinto estar fazendo você sofrer assim!
__ Sente, Murilo? - usou de ironia na pergunta. __ Você nunca poderá mensurar o que eu estou sentindo e o que ainda vou sentir!
Ela se virou, engolindo as lágrimas. As palavras de Paula vieram a sua cabeça: "ele detesta mulher chorona."
Murilo, com as mãos no bolso da calça jeans, a olhava com o olhar perdido. Suspirou.
__ Só quero que saiba que tudo o que disse e fiz nunca foi uma brincadeira ou que estava pensando só em mim e no meu desejo egoísta. - olhou o ambiente a sua volta. __ Vai ficar aqui?
__ Sim, aqui me sinto melhor do que na mansão, mas não se preocupe, vou cumprir todo o contrato. Quando seus pais ou outras visitas chegarem aqui, eu as receberei como se fôssemos um casal normal e feliz.  Acho que essa é sua preocupação, né?
Ele levantou o pano que cobria um quadro, parou para admirar.
___ Você é muito talentosa!  - elogiou. ___Mas não vim até aqui, para ver suas obras...o segurança me ligou, disse que tinha passado mal.
___ Foi só uma indisposição. Fiquei nervosa com o que fiz na cozinha.
Ele riu de um jeito sedutor que acabava com suas barreiras. 
___ Você é fogo!
___ E você passa a mão por cima de tudo o que ela faz, não é mesmo?
___ Você que está dizendo... - passou os dedos displicentemente na face de uma moça, de uma tela pintada à óleo. 
___ Eu vejo, aliás, desde o dia em que me trouxe para cá, para me seduzir...que notei como você a tratava. - a mágoa na voz não pode ser disfarçada. __ Sou tão idiota que enganei a mim mesma, era tudo tão óbvio... tão na minha cara!
Ele ignorou o comentário, andando lentamente, examinando tudo, como se procurasse algo escondido. Pegou o saco de biscoitos ao lado da poltrona.
___ Comeu isso aqui, por isso passou mal. - concluiu.
___  Fazer o que? Se eu não pudesse comer as Tortillas, ninguém mais iria! Não consta no contrato me deixar ser humilhada por sua amante! - desceu os olhos para os biscoitos em sua mão. __ Vai me proibir de comer biscoitos, agora? Passei mal porque são doces demais! - afirmou.
___ Não, você passou mal, porque tem alguma coisa que não quer me contar. - a encarou sério e caminhou até ela, com passos largos.
Martina se afastou em proteção e Murilo numa puxada de mão, descobriu o desenho feito a grafite e a feição tão calma, deu lugar a uma face irritada. As sobrancelhas arquearam e os olhos negros a fuzilaram.
Martina arregalou os olhos assustada.
__ Quanto tempo ainda, vou ter que esperar para que você me diga que serei pai em breve? - indagou, pegando forte no seu queixo.
Martina gelou e  desviou o olhar. Ele continuou, irritado:
___ Ainda não entendeu, que descubro tudo o que eu quero? Feche tudo aqui. - ordenou.__ Não vai dormir neste lugar, enquanto estiver com meu filho na barriga!
Martina fixou os olhos nos dele com a ordem. O olhar frio dele a paralisou. Não demonstrava nenhuma emoção ao saber que seria pai e então, a infelicidade dela foi completada, confirmando que tudo o que viveram tinha sido uma mentira.

UM TEMPO PARA AMAR 1° Lugar na Categoria, Cena Dramática #CDouradosnaliteraturaOnde histórias criam vida. Descubra agora