Ficar cinco dias num trem traz muito o que pensar
Eu observava a vegetação passando rapidamente pela janela do trem. Eu já estava confusa o suficiente para conseguir fazer qualquer outra coisa. A única coisa que eu conseguia pensar era o quanto, em pouco mais de um mês, minha vida mudara completamente. Eu nunca havia parado realmente para pensar, e agora que eu tinha pelo menos quatro ou cinco dias naquele trem pela frente, eu finalmente parei para pensar nisso. Ficaria cinco dias presa dentro de um vagão, apenas esperando e rezando para que nenhum monstro nos encontre.
Pouco mais à frente no vagão do refeitório, eu podia ver uma família pequena, mas tinham a fisionomia alegre. Às vezes eu via-os sorrindo, conversando animadamente ou até mesmo fazendo uma pequena guerrinha de comida. Mãe, pai e filha. E a inveja começava a se aflorar em mim. Talvez eu nunca tivesse uma família de propaganda de margarina como aquela. Na verdade, nunca tive mesmo. Cheguei perto uma vez, quando eu saia com minha mãe para caminharmos no Central Park, mas era só isso. A única sensação que tive sobre felicidade familiar. Sou paranoica quanto a isso, nunca neguei.
E, como eu disse, estou tento bastante tempo para pensar sobre isso. E uma das coisas que mais povoou minha mente foi o fato de que eu me sentia cada vez mais distante da minha mãe. Eu não sei bem o porquê, mas desde que eu fora para o Acampamento Meio-Sangue, eu não sentia a necessidade de contar-lhe tudo. Na verdade, desde que eu fora, nem ao menos sentira a vontade de mandar uma Mensagem de Íris que fosse. E agora, vendo a família feliz há poucos metros de mim eu sentia que aquilo jamais seria minha realidade.
Outra coisa que me perturbava era a conversa que Nico tivera com Hades, onde ele acusava Poseidon de ter feito algo e Hades dizendo que eu apenas não me recordava. Alguma coisa em minha mente dizia que aquilo era importante e eu não podia simplesmente deixar para lá. E quando eu tentava relembrar tudo desde a memória mais antiga que tinha, quase nada vinha à minha mente. Na verdade, me parecia mais que eu quase não tinha memórias e eu podia dizer que era uma amnésia fraca.
Por exemplo, eu sabia que caminhava no Central Park com minha mãe, mas não me lembrava de uma ocasião específica. Sei que eu tinha mania de revirar os olhos quando não tinha mais argumentos, mas eu não lembrava de fazer isso. Sei que eu tive um aniversário de quinze anos inesquecível, mas não me lembro de nenhum detalhe sobre o dia. A memória que se faria mais forte era a de eu conversando com Grover e Quíron, e descobrindo que era uma semideus filho de Poseidon. O que estava acontecendo comigo? Será que eu já não sabia mais quem eu era?
E como eu posso ter me apaixonado tão rapidamente por Nico? É, a essa altura já não me adiantaria nada negar nem a mim mesma. Não depois de todas as reações que ele me causava.
- Posso lhe oferecer mais um doce por seus pensamentos? – ouvi a voz de Nico por de mim, fazendo-me arrepiar por inteira.
Eu sabia que ele se sentara ao meu lado, mesmo sem eu tirar os olhos da janela. Eu ainda não sabia como conseguiria olhar em seus olhos depois de ter admitido a mim mesma que estou apaixonado por ele. Ele aproximou o rosto do meu, apoiando o queixo em meu ombro direito e eu pude sentir seu hálito batendo na pele nua do meu pescoço. Será que ele não entendia o quanto me afetava, não?!
- Você já está me devendo um doce. – eu disse, ainda sem tirar os olhos da paisagem que já não me era interessante.
- Vale a pena ficar devendo outro. – ele disse sorrindo, mas eu suspirei.
Se quando eu lhe disse sobre o sonho, ele nos arrastara até o Mundo Inferior, não gostaria nem de imaginar o que ele faria se eu lhe dissesse que era apaixonada por ele desde o momento em que o vira cuidando de mim na enfermaria da Casa Grande.
- Onde o Percy está? – perguntei, claramente procurando mudar de assunto. Era melhor do que mentir.
- Checando vagão por vagão se estamos seguros. – ele disse e eu ri baixinho.
- Imagino ele indo checar um vagão-dormitório e dando de cara com uma cena inapropriada. – eu comentei, ainda rindo da minha imaginação fértil.
- Por isso mesmo vim te procurar, não foi a melhor experiência que tive! – ele disse baixinho, como se contasse um segredo, e eu gargalhei.
Quando me calei, finalmente criei coragem para encarar seus olhos negros e profundos. Eram simplesmente lindos e eu podia me afogar ali dentro. Não sei como e nem porquê, uma ideia surgiu em minha mente. Na verdade, foi mais como uma placa grande de neon verde e laranja. Eu quase podia ter certeza que ele saberia me responder.
- Nico, qual sua experiência no Hotel e Cassino Lótus? – perguntei de repente.
Ele me olhou confuso.
- Por que acha que eu tenho alguma experiência com aquele lugar?
Suspirei. Quem sabe eu estava enganado?
- Quando falamos dele lá no Magnolia, eu podia jurar que você o conhecera pessoalmente pela reação que teve. – eu disse.
Ele respirou fundo, como se criasse coragem, antes de começar a me narrar. Não o interrompi nenhuma vez.
- Eu vivi lá por décadas. – ele começou a narrar. – Minha idade pode ser dezesseis, mas seria mais de setenta se eu não tivesse ido para lá. Eu e minha irmã, Bianca, por parte de mãe e de pai. Fomos para lá depois que Zeus jogou uma bomba na casa, matando minha mãe. Na verdade, Hades mandou as Fúrias nos levarem para lá, pois havia a quebra da promessa de depois da Segunda Guerra Mundial sobre os Três Grandes terem filhos com mortais. Então meu pai achou que o lugar mais seguro seria lá. O Cassino Lótus é o lar dos comedores de lótus. Quem lá entra e come da flor de lótus, não vai querer sair nunca mais. E quanto mais se fica lá dentro, menos noção do tempo você tem. O tempo passa bem mais devagar do que aqui fora. Eu e Bianca passamos quase um mês lá dentro, mas quando saímos, se passaram várias décadas.
Ele parou de falar e continuou olhando para baixo. E eu fiquei a observá-lo, digerindo tudo o que ele me falava.
- Eu conheci apenas James, Diana e a Anne. Mas e sua irmã Bianca? – eu perguntei, confusa, mas me arrependi assim que ele me olhou tristonho.
- Quando fomos para o Acampamento, ela foi convidada a ser uma Caçadora e aceitou. E eu fiquei com muita raiva, pois ela ia me abandonar quando eu tinha apenas dez anos. Então ela partiu com Percy e alguns outros para uma missão atrás de Annabeth. Ela morreu no meio da missão.
Levei alguns segundos para digerir. – Sinto muito. Não faço ideia de como é a dor de perder alguém.
Eu o abracei e algo me dizia que eu estava mentindo, que eu sabia sim o que era perder alguém.
- Você sabe sim. – ele disse, me deixando completamente confuso. – Só não se lembra.
Ele sorriu tristemente.
- O que quer dizer com isso? – eu perguntei.
- Um dia você saberá. – ele disse misteriosamente, me deixando ainda mais aflita.
E então outro flash se lançou em minha mente.
- Nico. Se no Cassino Lótus não tem noção do tempo, pode-se dizer que vive para sempre, não é?!
- Eu acho que sim. – ele respondeu confusamente, até que a mesma ideia pareceu surgir em sua mente. – Você não acha que...
- "Pelas portas da vida eterna irão passar". – recitei, sentindo-me animada. – É o outro único lugar que eu consigo imaginar para estar os instrumentos!
- Mas não seria meio arriscado colocarem lá, quem quer que tenha os roubado? – ele perguntou, procurando analisar todas as opções que tínhamos, mas parecia tão animado quanto eu.
- Claro que não! – argumentei, levemente irritado. – Se é difícil de sair de lá e quem come a flor de lótus fica entorpecido, seria difícil até mesmo de se lembrar porque fora lá!
Não queria ficar bravo e exaltado, mas eu tinha total certeza de que era lá que quem quer que tenha roubado os instrumentos, tenha-os colocado lá. Não sabia como, apenas sabia.
- Tem razão. – ele se levantou do banco de acolchoamento vermelho. – Vamos procurar Percy.
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O Filho de Poseidon e O Filho de Hades
Fanfiction(Você pode encontrar o original A Filha de Poseidon e O Filho de Hades no link que está no meu perfil) Aos 16 anos, descubro que sou semideus, filho de um dos Três Grandes e tenho um irmão mais velho. Meu mundo vira de cabeça para baixo e tenho que...