Trinta e cinco

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Hoje o céu parece diferente. Não sei se é porque a tempestade finalmente foi embora e as estrelas voltaram a se destacar, ou se é porque tudo parece mais bonito agora – as pessoas costumam dizer que começamos a ver o mundo com outros olhos depois de passarmos por experiências difíceis.

Se "ver o mundo com outros olhos" significa dar valor a cada respiração das pessoas ao meu redor, notar cada detalhe de cada estrela no céu, sorrir com os latidos de um cachorrinho magricela resgatado de uma casa abandonada ou agradecer por cada segundo de vida, então elas estão completamente certas.

Eu penso na Letícia daquele dia chuvoso e entediante no trabalho. Parece haver um abismo de distância entre aquela Letícia e a de agora... Lembro de como tudo parecia estar dando errado naquele dia, antes do anúncio do sorteio.

Agora aqueles problemas parecem insignificantes pra mim.

— Tá olhando o quê? — Luciana me pergunta. Ela me encara de lado; um sorrisinho brota no canto de sua boca. A voz dela ainda está meio enrolada, mas as aftas estão começando a desaparecer.

— As estrelas — eu respondo. — Parecem maiores hoje.

Ela olha para o céu também.

— Parecem iguais.

Eu me acomodo ao lado dela. As ondas do mar se quebram suavemente na costa; o vento da noite contrasta com o calor que emana de uma fogueira que Alice acendeu para nós.

— Isso me lembrou uma coisa — Raíssa diz.

Ela mudou desde que a encontramos. Na verdade, todo mundo mudou. Não sei explicar exatamente como aconteceu, mas parece que só agora percebemos a força que temos juntas. O que aconteceu naquele galpão formou um laço entre nós, o tipo de laço que não se destrói mais.

Agora temos uma história.

— Lembrou o quê? — eu pergunto.

— Esquece — Raíssa responde, abanando as mãos na frente do corpo, como se estivesse tentando espantar o pensamento. — Deixa pra lá.

Hoje o dia foi intenso. De manhã, nós conhecemos a nova guia turística que vai tomar conta do restinho do nosso tempo em Curaçao. Ela anunciou que a Conexão Caribe vai dar de presente para nós uma nova viagem, como um pedido de desculpas pelo ocorrido. Eles entraram em contato com uma empresa parceira que organiza excursões para as Ilhas Maldivas e querem que a gente vá com eles, pra esquecer o que aconteceu no Caribe.

À tarde, nós começamos a arrumar as malas para o nosso retorno e saímos para comprar algumas coisas que faltavam, enquanto Alice e Felícia levaram o Cosmos para fazer todos os exames e tomar as vacinas.

Hariany teve que comprar um celular novo; a polícia não conseguiu recuperar o aparelho dela. Eu aproveitei para trocar a tela rachada do meu e eliminar a má sorte da nossa viagem, e Raíssa comprou óculos novos. Também demos alguns depoimentos extras para a polícia, especialmente Hari, que teve que relatar o que Doc fazia com ela nos anos em que eles namoraram.

Agora estamos aqui, numa parte reservada de uma praia próxima ao nosso hotel. As pessoas ainda se aproximam de nós para perguntar o que aconteceu; às vezes repórteres chatos nos perseguem para pedir depoimentos, mas usamos a desculpa de que não sabemos falar a língua deles.

— Não me conformo que a gente não nadou com os golfinhos — Mylenna diz, mexendo num graveto solto que não foi usado para acender a fogueira. — Não tinha outro dia pra sumir, Raíssa?

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