Capítulo 8

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Anahi


Não gostei quando o Alfonso falou com aquela mulher por telefone, mas fiquei mais calma quando percebi que o coração dela pertencia a outro homem, e gostei menos ainda quando ele disse que era divorciado. Pensar que outra mulher já esteve casada com ele, faz me sentir coisas estranhas, sentimentos que eu nunca tive antes e isso me deixa irritada.
Eu acabei de conhecer esse homem e já sinto como se ele fosse meu e só meu. A única coisa que me deixa tranquila é que a outra mulher nunca esteve aqui e eu simplesmente amei cada cantinho dessa casa, sinto como se fosse feita para mim.
-Eu preciso sair por algumas horas. - ele diz quando voltamos a sala e tem toda a minha atenção - Você sabe como usar o cooktop?
-Não, lá usávamos fogões a lenha.
Ele assente e passa a próxima hora me ensinando a usar cada aparelho eletrônico da casa, eu tento me distrair, mas não consigo esquecer o divórcio.
-Quando você se divorciou? - as palavras escapam da minha boca antes que eu possa pará-las.
-Faz alguns meses, um casamento curto, nós não nos amávamos, só suprimos necessidades, ela de se exibir e eu de ter alguém em casa me esperando.
Alfonso dá de ombros como se nada tivesse sido importante e me sinto relaxar.
-Na comunidade, os divórcios são proibidos, nunca houve nenhum caso, o guia Joe é muito severo quanto a isso. Ele diz que divórcio nos leva direto ao inferno porque é contra tudo que diz nas escrituras.
-Inferno é conviver com uma pessoa que você não ama ou que te faz mal, te machuca. Eu duvido que Deus queira o mal de qualquer um de seus filhos. A bíblia em mãos erradas, se torna uma arma perigosa.
Eu concordo com ele, vi muitas mulheres e crianças sofrendo castigos que Joe julgava correto.
-Agora preciso ir, Phill não vai me esperar muito tempo. - ele beija minha testa e vai em direção a porta da frente.
Não quero ficar aqui sozinha, não quero me afastar dele.
-Acho que eu deveria ir junto. - mordo meu lábio inferior e o encaro - Acho que Phillip vai querer falar comigo em algum momento e prefiro que seja agora.
-Bom, eu não queria mesmo te deixar aqui sozinha. A casa é segura, tem um sistema de alarme, mas gosto de ter você perto de mim, minha Anahi.
Sinto um arrepio percorrer meu corpo quando o ouço me chamar de minha Anahi, faz parecer que eu pertenço a ele e gosto desse sentimento.
Eu o sigo porta a fora e logo estamos atravessando a cidade e indo direto falar com Phillip.
Espero que ele acredite em mim, não tenho nenhuma prova contra Joe, apenas minha palavra e as marcas em meu braço, não sei como funciona aqui fora, mas mantenho a esperança de que as mulheres sejam ouvidas aqui.

-Alfonso, juro que se Ashley não tivesse me dito que você possui um caso interessante em mãos, estaria chutando sua bunda para fora do prédio!
Um homem que aparenta ser um pouco mais velho que o Alfonso aperta a mão dele e dá um leve aperto em seus ombros. Só então percebo que não sei quantos anos o Alfonso tem.
-É uma história bem interessante e se eu não estivesse vivendo ela, acharia um tanto estranha. - ele me puxa, passando um braço sobre meu ombro - Essa é a Anahi, a vítima e testemunha que vai te contar tudo.
-Vamos para a minha sala.
Ele abre uma porta e aponta para dentro me dando passagem.
Sento em uma das cadeiras e espero Alfonso contar como me encontrou e tudo o que eu disse para ele, nossa conversa foi fácil porque senti proteção e ternura vindo dele para mim, mas Philip mantém uma postura séria e sei que as perguntas virão em cascata sobre mim.
-Ok Alfonso, confesso que já ouvi histórias sobre comunidades Amish que vivem afastadas dos nossos costumes, tecnologia e tantas outras coisas, mas se toda essa história é real, estamos lidando com um psicopata religioso e isso é preocupante e perigoso.
-É real, Phil! Anahi não teria porquê mentir e o pai dela e o outro garoto não teriam saído a sua procura se não tivessem algo a esconder.
Alfonso demonstra tanta confiança em mim e isso me tranquiliza, sei que terei a chance de explicar e me defender.
-Eu entendo, Alfonso, o problema é que convencer pessoas a saírem da guarda de um líder religioso é mais difícil do que parece. Por falar nisso, Anahi, como você decidiu sair de lá?
Eu me ajeito na poltrona e esclareço a garganta, vejo Alfonso acenar para mim e respiro fundo.
-Como Alfonso te disse, minha avó começou a falar mais do que devia nesses últimos anos, ela comentou como era a vida fora da comunidade e foi quando entendi que os castigos não eram saudáveis e sim agressões. Ela também falou sobre...sobre os deveres conjugais e eu não poderia aceitar viver com um homem como Joe.
-Vocês não aprendem sobre sexualidade na escola?
-Não, esse tipo de conversa é proibida, ninguém jamais pode falar com as garotas sobre esse assunto. Os garotos recebem instruções pouco antes de se casar, mas as mulheres só descobrem na noite do casamento.
-Então sua avó foi a sua salvação. - Philip se inclina sobre a mesa e entrelaça seus dedos - Por que não contou para o último assistente social que apareceu por lá?
Começo a ficar nervosa novamente, esse é um ponto delicado, que não gosto de falar, abaixo minha cabeça sem poder encarar qualquer um dos dois.
-A primeira vez que tive consciência das agressões, eu tinha quinze anos. Esperei o dia da prova e fui a última a sair da sala, eu queria ficar sozinha com a assistente social. Ela se chamava Cassy Riley, nunca vou esquecer seu nome porque foi por minha culpa que ela morreu.
Sinto o nó se formar em minha garganta e Alfonso segura a minha mão, preciso continuar por ela, por mim e por todas as mulheres que ficaram para trás.
-Naquele dia, eu mostrei as marcas em meu braço e contei sobre todas as vezes que meu pai bateu em mim e em minha mãe, falei sobre tudo. Willian, o filho mais novo do guia Joe, ouviu tudo, ele viu que eu tinha ficado para trás sozinha e ninguém fica sozinho com forasteiros. Ele esperou que eu saísse e disse que contaria tudo para o pai dele, fiquei com medo do que íam fazer comigo, mas foi pior para Cassy. O guia Joe deixou ela partir como se nada tivesse acontecido. Dois dias depois, outro assistente social apareceu dizendo que precisaria repetir as provas porque Cassy tinha sofrido um acidente de carro indo para a cidade e não sobreviveu. Joe me disse naquele dia que, as vezes, sacrifícios são necessários para manter a ordem, nesse mesmo dia, depois que terminei a prova, meus pais me levaram ao confessionário e o guia Joe marcou a minha nuca.
-Posso ver essa marca? - Phil pergunta delicadamente.
Eu me viro e levanto meu cabelo expondo a cicatriz.
-Isso é uma letra J? - Alfonso tem o maxilar tão apertado quando me faz a pergunta que parece que seus dentes irão quebrar a qualquer momento.
-J de Joe, essa marca é deixada apenas nas pessoas que o desafiam ou tentam abandonar a comunidade. Não conheço mais ninguém na comunidade que a tenha. Depois desse dia, nunca mais falei com nenhum assistente, não por mim, mas pela vida deles, eu não poderia colocá-los em risco de novo.
-E então você seria a Escolhida, viu a oportunidade para fugir e o fez. - Phill parece pensativo, provavelmente tentando encaixar toda a história - Quantas pessoas vivem lá?
-Agora, cento e quarenta e uma pessoas.
-E como Joe faz para manter controle sobre o número de pessoas? Digo, como ele consegue fazer para que esse número não aumente muito?
-Na época em que o pai do Joe ainda era o guia, havia uma médica obstetra, ela ensinou tudo o que sabia para outras mulheres e o conhecimento foi passado de mulher para mulher na comunidade. Nenhum homem pode ter contato corporal com outra mulher que não seja sua esposa, então somente outras mulheres tem autorização para essa função, também aprendemos desde cedo a cura alternativa, assim só precisamos de médicos em casos extremos. Depois que uma mulher tem um ou no máximo dois filhos, elas são operadas para não ter mais filhos e os idosos não fazem parte da contagem de moradores porque, como o guia diz, eles logo morrem. Os homens decidem se querem um ou dois filhos e as mulheres obedecem.
-E como funciona a parte de comércio, dinheiro?
-As mulheres costuram e fazem artesanato e os homens cultivam na horta, também há algumas vacas e galinhas, então temos uma pequena produção de leite e ovos. Parte da colheita fica para a comunidade e todo o restante é vendido para as cidades vizinhas, o dinheiro é dividido em partes iguais para todas as familias e o homem decidi o que será feito. Minha avó ficou com uma parte do meu avô e eu acabei pegando um pouco do dinheiro dela para fugir. - eu olho para Phillip, com medo - Vou ser presa por ter roubado?
Phillip sorri e dá alguns tapinhas em minha mão.
-Não Anahi, não. Não foi um roubo, foi um gesto desesperado de sobrevivência.
Alfonso olha o relógio e se levanta, acho que percebeu que estou um pouco incomodada.
-Já está tarde, Phill. Anahi precisa descansar, foi um dia longo.
-Parece que sim Alfonso. Só deixe ela assinalar no mapa o local da comunidade e vamos conseguir a autorização para manter Joe sob custódia enquanto solicitamos a exumação dos corpos das esposas dele.
Eu mordo meu lábio inferior e seguro a vontade de chorar pelo que preciso contar agora.
-Vão precisar pedir para exumar os bebês também. - eu digo enquanto marco o local da comunidade no mapa - Alguns partos dão errado. É que, como as parteiras não são médicas com total conhecimento, algumas mulheres morrem, outras acabam tendo uma gravidez indesejada porque a laqueadura não foi feita corretamente, esses bebês que não são desejados, nascem mortos, ou é o que Joe diz.
Um silêncio mortal cai sobre a sala e vejo que Alfonso e Phillip me olham quase sem piscar.
-Todos acreditam no que Joe fala, que faz parte da escolha divina ter no máximo dois filhos e por isso o terceiro é sempre perseguido pela morte. Ele diz que ouve o Senhor, mas eu deixei de acreditar nisso o dia em que Cassy morreu. Algumas mulheres juram ter ouvido o choro de seus bebês antes de recebê-los sem vida nos braços.
Phillip parece transtornado e me dando as costas, apenas diz adeus, enquanto Alfonso me leva para fora e seguimos para a casa em total silêncio no carro. Acho que os assustei com a história dos bebês.

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