Tudo estava turvo na visão da garota. Ela abriu os olhos e demorou a compreender sua condição.
— Onde estou? O que aconteceu? — A garota tentava assimilar.
A primeira coisa que ela percebeu foi que havia sido dopada. Por quanto tempo dormiu? Estava em uma prisão, uma pequena sala enferrujada. Foi até as barras de ferro e viu outras celas em um corredor horizontal. As demais estavam vazias.
Seus olhos lacrimejaram ao encostar o rosto entre as barras. Estava sozinha naquele lugar frio, somente vestida de sua camisa rosa e seu short jeans. Todas suas coisas haviam sido tomadas por aqueles elfos. Aneline voltou para junto da parede e despencou sentada ali. Secou os olhos usando a camisa, fungou, e suspirou.
Na mente da garota, diversos questionamentos vinham a todo momento. Nem sequer se permitiu ter medo, apenas dúvida e tristeza. Conforme imergia no mundo imaginativo, seus sentidos começaram a perceber barulhos de metal nos andares superiores. Mesmo não sabendo que lugar era aquele, concluiu estar em um tipo de calabouço.
Estava inerte, com a mão sobre o rosto para se proteger da fraca luz que entrava ali. Ficou assim até se espantar com uma possibilidade. Ane levou a mão ao bolso frontal de seu short, torcendo para que aquele bilhete ainda estivesse ali. E, de fato, estava, assim como o aparelho mp3 de seu pai. Ela sorriu por um momento. Voltou a ler o bilhete a fim de viajar no tempo.
"Oi, filha querida. Lembra que dia é hoje?
Sim. Aniversário de morte da sua mãe. Sabemos que ela foi uma mulher incrível, não é?
Também sei que você gosta de manter viva as lembranças dela. Por isso tive o trabalho de preparar esse aparelho mp3 para você. Sei que não é a última tecnologia do mercado, mas contém as músicas favoritas da sua mãe. Estão todas aí. Basta dar o play e navegar pelo passado. Eu já testei e realmente funciona. É como se tivesse voltado a vê-la novamente."
— Já faz um ano... — lembrou Aneline, dobrando o bilhete e o guardando.
Sua mãe veio a falecer quando a garota tinha doze anos. Eles ainda moravam na capital. Uma casa simples, mas confortável, no subúrbio da cidade de altos prédios.
Ane fechou os olhos e recordou daquela época.
Três anos atrás. Seu pai era artista e sua mãe professora. Ele dançava hip-hop e ela lecionava história no ensino fundamental. Carla via sua filha todos os dias na escola. Hector fazia serviços sociais e também foi algumas vezes à escola para ensinar dança às crianças. Eles tinham uma boa vida.
Às tardes, em casa, Aneline estava acostumada a sentar com sua mãe na poltrona e ouvir os discos de vinil. A mulher de pele negra e de cabelos cacheados pegava cada disco e explicava sobre as músicas, sobre sua história e sobre como os avós de Ane eram pessoas cultas e inteligentes. A garota não entendia muita coisa e também não gostava daquilo. Preferia ouvir as Spice Girls, mas tinha vergonha de admitir para sua mãe. Carla ficava muito feliz em mostrar seus gostos para a garotinha, mas, certo dia, esta divergência veio à tona.
Era noite, Hector havia chegado das apresentações de rua. Todos se reuniram para jantar, mas, antes, os pais decidiram conversar com sua filha. Ane havia feito dez anos, e já estava na hora de desenvolver seus talentos. Deveria se inscrever no ballet, para acompanhar sua prima, ou ingressar na equipe de dança mirim em que seu pai era professor. No fundo, ela sabia que a escolha iria agradar sua mãe ou seu pai. Hector gostaria de passar mais tempo com ela, e Carla havia sido bailarina, queria o mesmo para sua filhinha. Ane optou por hip-hop, e por dois anos foi campeã juntamente com a equipe de seu pai.
Carla ficou muito feliz por sua filha. Aneline ia da escola para as competições e chegava em casa somente à noite. Carla a recebia todo dia, e fazia seu macarrão preferido. Tentou ainda manter a cultura de ouvir música clássica e contar as histórias dos avós para Ane naquela poltrona. Mas a garota se chateou.
Disse sobre como tudo aquilo era brega e antiquado. Não queria saber daquilo. Aneline tinha doze anos quando fez essa revelação. Sua mãe suspirou, e demonstrou um sorriso desconcertado. Sabia que não poderia ser a heroína de sua garota para sempre. Uma hora ela iria se desprender e seguir seu próprio caminho. Por mais que este tenha sido um dos ensinamentos de Carla, ela não estava preparada assim que aconteceu.
"Ane, você deve se encontrar. O que você gosta de fazer?", esta foi uma conscientização que Aneline ouvia de seus pais desde pequenina. A capital era cruel, e a garota deveria se preparar para o futuro o quanto antes. Mas doeu no coração de Carla ver sua filha passar o dia todo fora, e perder o único momento em que passavam juntas. Um momento especial.
Foi em uma dessas noites que Aneline e Hector chegaram em casa e avistaram o corpo de Carla sobre a poltrona habitual. Ela havia tido um infarto fulminante. A garota nunca se esqueceu do dia em que seu pai correu até ela, e em vão tentou animá-la. Lembra-se até hoje, que na vitrola tocava uma música de Erik Satie. Nunca se esqueceu de como seu pai chorou naquele dia enquanto esperava a ambulância.
Depois desse dia, Hector teve que abandonar o hip-hop. Era sua paixão, mas não servia para pagar as contas. Ele procurou estudar, enquanto se virava com as economias da família. Com bastante esforço, terminou o curso de computação gráfica, uma das profissões mais concorridas da capital. Por fim, ele tentou criar um jogo que emplacasse nas mídias digitais. Ao ver seu fracasso, tiveram que se mudar para Vale Laguna, onde tudo que conseguiram foi um barraco aos pedaços.
Aneline enxugou as lágrimas, que desciam como cascata de seus olhos. Ela retirou os óculos e os limpou. Nunca sentiu tanta falta de sua mãe como sentia naquela prisão fria. Viu sua vida mudar totalmente e nem sabia se conseguiria voltar para casa. Também não sabia onde estava seu amigo vampiro. Apenas não quis pensar nisso. Pegou o aparelho mp3 e colocou os fones no ouvido. Quis sentir a presença aconchegante de sua mãe. Então colocou Gymnopédie No.1 de Erik Satie, uma das músicas preferidas dela.
Ane desistiu de seguir seu próprio caminho desde que sua mãe morreu. Pretendia ser exatamente o que ela foi. Interessou-se por história, e se acostumou a ouvir música clássica. Isso a lembrava do requinte de Carla, e da nobreza de seus avós. Deixou a dança de lado e estimulou-se a ler cada livro da biblioteca de Vale Laguna, por mais que tenha sido difícil desenvolver o hábito da leitura.
Seria assim que ela se tornaria uma grande mulher e conseguiria dinheiro suficiente para dar uma vida melhor para seu pai. Um homem já de idade que utilizava de todo esforço para ascender no mercado de jogos.
Hector já estava cansado, e nunca conseguiu acompanhar o ritmo dos jovens. Isso doía no coração de Aneline. Ainda mais quando tinha que ouvir os deboches de Taruska, a garota de cabelos azuis da escola. A garota deixou uma raiva crescer dentro de si ao longo do tempo, fazendo-a odiar toda aquela indústria de jogos.
Jurou ajudar seu pai. Prometeu a si mesma que iria ajudá-lo de alguma forma.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Mundo das Bizarrices
FantasyAneline é uma garota que vive em uma região onde os jogos digitais são a febre do momento. Diante da triste situação financeira que ela vive juntamente com seu pai, e ainda de luto pela recente morte de sua mãe, ela acaba se envolvendo num "acidente...