Capítulo 35 (Vicent )

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   Eu não tenho um início de história, eu sou assim desde muito tempo. Minha primeira lembrança é de antes do mundo caindo em esquecimento profundo, a terra desolada e arrasada foi algo depois de mim, mas não causado por mim, algo maior do que eu, que sempre me dominava, em seus sussurros podia ouvir sua voz gutural e antiga roçando no meu cérebro e na minha inconsciência todas as noites. Eu poderia ser só mais um organismo solto ao léu da existência, mas o escuro que me cobria foi se esvaindo atenuando o sussurrar que se intensificava em minha cabeça, me empurrando para algo que eu não conhecia, sem escolha cheguei ao ápice da minha própria encarnação incompleta.

   Os primeiros segundos de minha consciência foram tomados por pingos de chuva, antes mesmo de saber o que era chuva, pingos gelados me cobriam o corpo em cima do asfalto numa rua enlameada, a passagem de tempo foi infinita, temia me mexer e até mesmo olhar ao redor, a voz ainda sussurrava em meu ouvido, ela me sugava e dominava, pressionando meu peito até perder o ar, era a voz antiga e dominadora de um ser muito maior, uma presença forcada e pesada. Ela sussurrava para mim o tempo todo: "Você é meu, minha condução, cavalaria, herdeiro do meu ser. Ande pela terra, erga-se em glória, aprenda com os vermes de duas patas como ser traiçoeiro igual a eles, veja seus corações corrompidos e cresça em seu próprio poder. Será conduzido por meus escolhidos..."

   A voz se intensificava vez por outra, minha própria existência se fortificou com seu sussurrar, e antes que eu pudesse finalmente me erguer do chão molhado fui arrancado do meu estado letárgico, fui conduzido adiante com a proporção de cada passo que era dado em direção oposta ao da voz que sussurrava, quanto mais eu me distanciava, menos eu podia ouvir o murmurar que agia em concordância como se tudo estivesse seguindo um roteiro que o próprio havia escrito.

   Meu corpo foi carregado por alguns metros e quando fui solto ainda permaneci com os olhos fechados, tentando buscar a escuridão que outrora me cobria, foi na impaciência impertinente que me cercava com gritos mais exacerbados que despertei com três estalados tapas em meu rosto, enxerguei o mundo pela primeira vez, meu olhar tonto girava pelo céu acinzentado até se prender no asfalto escurecido e rachado, uma proporção de prédios decaídos e velhos, as cores fortes e tonalizadas me assustaram mas antes que eu pudesse fugir um homem me segurou pelos braços prendendo seu olhar no meu, foi um instante para reconhecer a desigualdade de nossas proporções, ele era muito mais alto que eu, mais forte e tinha outros iguais a ele que também me encaravam.

  Foi ali que de repente, de uma hora para outra me vi preso a um inicio de vida que nunca se fez em um começo adequado. Eu não era como um daqueles homens fortes, mas eles me viam como uma criança perdida, e dentro de mim percebi que aquilo era o suficiente para mim, o suficiente para começar, para entender, para tentar ser além do que a força sombria que me puxava queria que eu fosse.

   Não sou um Deponial, nem um humano modificado com a cinzas de Deponial, no entanto tenho a existência atrelada a eles. Nunca parei para tentar diferenciar muito as coisas, eu simplesmente sou o que sou e me esforcei para não complicar as demais questões que tinham ao meu redor, nada era muito significante para mim.

   As pessoas que me despertaram foram as mesmas que me acolheram, recebi um lugar ao lado delas, e por isso vivi toda minha vida com eles, os Magnatarios, fui treinado por eles e aprendi com eles. O sistema burocrático que os regiam era o de sempre manter o grupo grande e unido, o que restou de humanidade prevaleceria. Na época em que eu estava com eles era sob o comando de Léon, o homem forte e vigoroso que me acolheu, o mesmo que me despertou com três tapas no rosto.

  Fui mais um órfão criado entre tantos outros através do sistema dos Magnatarios, sempre recluso e sozinho sem interagir com as outras crianças, mas Léon me moldou, me acolheu e me ensinou a ser mais verdadeiro comigo mesmo. Era uma relação de aprendiz e professor, mesmo ele estando ocupado boa parte do tempo. O que diziam ao seu respeito era que ele conseguiria restaurar a humanidade, era última chance da espécie humana. Naquela época os Magnatarios viviam com mais cautela e cuidado, protegendo a todos que conseguiam sob os muros fortes de seus altos prédios.

Preciso Te Ver Além Do Céu NoturnoOnde histórias criam vida. Descubra agora