O Mundo já não era o mesmo, as crianças não brincavam nas ruas, cachorros não reviravam o lixo da vizinhança atrás de um pedaço de osso, lojas não estavam abertas, mas os becos escuros ainda eram os mesmos becos escuros de antes, ainda perigosos, e as paredes encardidas ainda guardam histórias de tudo que presenciaram, histórias fundidas nos tijolos manchados. Eu estava sozinha perdida no desastre da humanidade sem um futuro em planos, apenas fugindo, vivendo, ou pelo menos tentando, como tudo isso foi parar assim? Eu não faço a mínima idéia, a merda já estava toda aí quando nasci, nunca conheci o outro mundo em que havia guerras ideológicas, discussões diplomáticas, a economia geopolítica fazendo o mundo girar em volta da disputa capitalista por posse, eu só conheci uma coisa, uma vida, e até onde eu entendi, ela não vale muita coisa, só eu sinto a dor da perda quando algo me acontece, minha vida tem valor apenas pra mim e por isso eu vivo fugindo, por mim.
Existiu uma vida diferente antes disso, me contaram histórias, me disseram coisas sobre o passado e tudo isso é muito estranho pra mim, tudo o que era e não é mais, então depois de um tempo parei de escuta-las já não queria mais ouvir, eu me enchi o suficiente sobre toda a alegria já vivida e que eu jamais testemunharia. Até onde sei nunca tive um pai ou mãe, tudo o que me lembro é de acordar no fim de uma rua enlameada, eu tinha uns 8 anos, e um homem me carregar nas costas como se eu fosse um saco de batata até um beco junto a outras crianças ele nos entregou a um velho ranzinza, tecnicamente ele nos vendeu pra ele, depois disso passei um tempo de adaptação e treinamento que durou, uns 4 anos, foram os tempos de pura agonia, me cansei daquilo e fugi sozinha, desde de então tem sido só eu.
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-Droga! Merda de Deponiais!!! -Praguejei enquanto escalava uma grade de metal - Merda! Merda! Respira fundo, você vai sair dessa! - Falei pra mim mesma enquanto agarrava com força a grade me impulsionando pra cima.
Eu podia ouvir seu uivo esganiçado próximo a mim, não só um como muitos deles. Malditos animais do inferno. Usei minha força máxima e pulei a grade com agilidade, mas precisava ganhar mais espaço entre mim e eles, continuei correndo entre as casas apinhadas umas nas outras, passando por um estreito canal de uma cerca e outra, eu ainda podia ouvi-los destruindo tudo atrás de mim, esbravejando querendo meu sangue, corri até uma área coberta de sucata, passei me arrastando entre dois pedaços enormes de aço retorcido, eu corri a minha vida toda mas ainda parecia insuficiente, continuei em frente até chegar a uma praça cheia de pedregulhos, mais a frente tinha umas casas que poderia usar pra distraí-los, acelerei o passo ao ponto de quase perder o ar, meu pulmões ardiam e eu mal respirava, não consegui manter o ritmo e minhas pernas cederam ao impacto de um pedregulho sob meu pé esquerdo, cai de joelhos no chão, peguei a primeira pedra que vi ao meu lado, rachada na ponta com uma abertura afiada, e antes que eu pudesse me virar, ainda com a pedra na mão, o Deponial me agarrou pelas costas e me arremessou pelos ares para o outro lado.
Senti uma dor inflamar por toda minha coluna, minha perna esquerda estava dobrada de um jeito estranho e eu mal enxergava direito. Senti a pata esquelética do Deponial me puxando, seu hálito de ovos podres e musgo me deixaram enjoada, ele arqueou a cabeça para trás e num movimento rápido mordeu minha coxa, eu surtei, a dor era insuportável, eu sentia minha perna ficando ensopada e quente com o meu sangue, peguei a pedra em minha mão e apunhalei a fera no pescoço diversas vezes, eu senti acerta-lo com força a cada impacto ele gritou e pulou em cima de mim e com a garra esquelética bateu na minha mão fazendo arranhões profundos. Eu não conseguia me manter, não tinha mais forças, os olhos amarelos da criatura me fitavam com tamanha crueldade o mais puro instinto selvagem misturado a maldade humana, uma obra blasfema, impura de quase 2 metros de cumprimentro e largura, eu senti que já havia perdido e pude escutar os outros Deponiais chegando perto. Quantos eram? 7 ou mais? Eu não sabia, e também não conseguiria lutar contra, nem ao menos vê-los. E naquele momento senti muito ódio, por não conseguir me levantar, por acabar ali, por isto depois de tudo ser o meu fim, não era o que eu queria... Não era.
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Preciso Te Ver Além Do Céu Noturno
Fiction généraleNum mundo apocalíptico a beira da extinção dominado por seres bestiais, Leona sobrevive sem memórias de seu passado. Após ser salva por um garoto desconhecido, sente que seus destinos se uniram em meio ao caos mesmo com receios em relação a ele. Amb...