O quarto era diferente. Sophia gostou do ar campestre que tinha. Cortinas leves de um tecido florido deixavam entrar a luz do sol. Deviam já ser umas cinco da tarde. Ela sorriu. Lembrou-se do tempo em que seu pai era vivo. Eles sempre comiam alguma coisa olhando o sol se pôr onde quer que estivessem.
"Mesmo se eu não estiver mais aqui, Soph, lembre-se do lema da nossa família, que é..." Ele a esperava completar com o rosto bem sério."Como o sol, caímos hoje, levantamos mais fortes amanhã." Dizia ela sorrindo. Só então ele mastigava seu sanduíche.
E ele caiu. Caiu nas garras de um câncer violento que primeiro tirou a segunda melhor coisa que, segundo ele, Deus tinha lhe dado: sua voz.
Foram poucas semanas até que ele se foi.
Daí, ela ficou a mercê do Estado.
O orfanato não era tão ruim. Ela só não gostava da pressão para ser adotada. Com o lábio leporino, as chances eram bem pequenas. As pessoas que adotavam crianças queriam crianças bonitas e ela sabia que isso ela não era. Não que se importasse. Seu pai, durante os doze anos em que estiveram juntos, a amou muito,e a preparou para a crueldade do mundo. Ele lhe ensinou muitas coisas, se defender, ter uma língua afiada, e a nunca, mas nunca mesmo, se deixar ser diminuída.
Sophia era feliz no orfanato. Ninguém mexia muito com ela, não depois que ela cortara o cabelo de Phiona até a raiz, ou quebrado o nariz de Peter.
Ela era muito esperta. Tanto que saía sempre que quisesse e nunca tinha sido descoberta.
Seu pai, é claro, a tinha ensinado a roubar. Pequenas coisas, carteiras de distraídos, ou pequenos golpes.
Sophia gostava particularmente de um: os dois iam ao banco, e na fila do depósito, ela começava a chorar, gritando e chutando, como se estivesse sofrendo um surto nervoso. Na confusão, seu pai facilmente trocava os envelopes com dinheiro pelos vazios. Eles sempre comemoravam com pizza!
Até que quando estava para completar dezoito, data em que deixaria o orfanato, numa de suas saídas furtivas, ouviu um barulho em uma lata de lixo, e ao averiguar o que era descobriu um lindo bebezinho.
Foi amor a primeira vista! Sophia decidiu que cuidaria daquele serzinho com todas as suas forças. O primeiro passo foi levá-la para o orfanato e conseguir que aceitassem a bebê. Não foi difícil. Sophia sabia algumas coisas bem sujas sobre a assistente social que geria o lugar. "Informação é poder" nunca esqueceria as palavras do pai.
A partir daí, Sophia viveu os melhores dias de sua vida. Tinha encontrado um sentido para sua vida: cuidar de um bebê forte e saudável que sorria para todos. Sophia sentia o coração cheio de orgulho pela menininha. E a vida passou de ficar pelos cantos a ser a irmã de um anjinho de cachos louros e olhos azuis.
Até que descobriram que o bebê se chamava Sarah, e que sua mãe era Joan Briston, prostituta falecida pouco depois do nascimento de Sarah. Joan tinha sido casada com Alfred Briston, também falecido. Alfred tinha um irmão, David Briston, que se mostrou disposto, com ajuda de uma pensão do Estado, a assumir a guarda de Sarah.
Quando soube que não poderia estar mais com Sarah, Sophia passou toda a noite que antecederia a entrega da bebê ao tio, em intensa contemplação. Não havia tempo de fuçar a vida do cara. Ele tinha jeito de quem bebia, e muito, mas isso não seria suficiente. Ele tinha casa própria, e uma esposa que já tinha afirmado que criaria Sarah como se fosse sua própria filha. Depois de muito pensar e de não encontrar nenhuma solução, resolveu passar as poucas horas que lhe restavam com a bebê. Sophia adormeceu acariciando o rostinho gordinho, lhe prometendo que tudo ficaria bem.
No fim das contas, ao ver o carinho com que Sophia embalava Sarah e ao saberem que ela também era órfã, decidiram adota-la.
Sophia logo desconfiou que eles apenas queriam além de jogar o fardo de cuidar de um bebê em suas costas, ainda desfrutar de uma empregada doméstica grátis.
Ela não se importava desde que continuasse com Sarah.
"Um dólar por seus pensamentos..." O susto ao ouvir aquela voz grave foi tão grande que Sophia literalmente caiu da cama.
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Brass
FanfictionSophia sempre pensou que sua vida nunca mudaria. Mas, quando teve diante de si os olhos marrons daquele gigante, que a olhava como se lhe pertencesse, descobriu que a vida sempre tem uma ou mais cartas na manga. Primeira história de uma série: Bras...