Cochichos
Levantei-me da cama. Não posso dizer que foi por vontade própria. Se dependesse de mim, ainda estaria debaixo das cobertas.
Só saí mesmo porque fui forçado. E também não queria decepcionar todo mundo. Já que ambos estavam animados para ir ao parque. Eu não iria estragar a alegria deles dizendo que não os acompanharia. Por isso, eu vim.
Com a ajuda de todos, um pano é forrado no gramado fofo e verdinho, devidamente aparado. Colocamos a cesta contendo as comidas e bebidas. Todos passam a conversar. Sai de tudo. Desde assuntos banais, sutis e os mais bobos.
Consegui distrair-me, ainda que por pouco tempo. Comemos, damos risadas, atentamos uns aos outros. Usando apelidos antigos que fora ganho quando éramos mais novos.
É bom sentar ao ar livre e respirar ares diferentes. Um puro, sem a interferência dos gases poluentes. Havia bastante tempo que não fazíamos isso. Até a diretora Emma veio conosco.
Coisa rara, em razão da mesma viver ocupada resolvendo problemas do casarão. O tempo está bastante abafado, gerando um calor insuportável. O que faz alguns pularem no pequeno lago para se refrescarem.
Não podemos confiar no clima indeciso da cidade. No mesmo instante em que está frio ou chovendo, os pingos de água somem dando lugar ao calor infernal.
Hoje é um desses dias. Está abafado e não sabemos se vai chover. Como viemos na parte da manhã, quando dá meio-dia arrumamos tudo e começamos a caminhar felizes em direção a nossa casa.
Ao menos eles, porque eu não. A solidão junto a outras coisas que vinha tentando evitar a alguns dias, está mais forte. Impossibilitando-me de camuflá-la em meio a outros sentimentos.
Some por alguns minutos ou horas e retorna três vezes mais forte. Estou a evitar tudo. Contato visual com quem quer que seja. Cenas que possam me despertar crises, e pessoas que sei que irão causar problemas.
Nesse momento, sou o meu pior inimigo. Estou lutando para fugir de mim próprio. No entanto, como se faz isso quando você está preso a si mesmo? Sujeito a todos os tipos de pensamentos banais.
Fechar os olhos não dá. A imaginação irá começar a trabalhar na produção de acontecimentos ruins do meu passado.
Tampar os ouvidos? Está fora de questão. Surgirá uma voz sussurrando palavras que machucam até a alma. Se calar é o pior de todos. Os sentidos passaram a trabalhar em conjunto.
E ao invés de ajudar, piorará tudo. Iram me mostrar cenas danosas. Ouvirei palavras cortantes, mais terríveis que navalha. E me sentirei pior do que já estou.
A única solução plausível é ficar perto dos meus irmãos. Os únicos que a minha mente não rejeita, e não me submete a pensamentos indesejados.
Opto por entrar no assunto do momento. Assim, forçando-me a atuar e demostrar estar igual a eles: de bem com a vida. O problema é que quanto mais me esforço para parecer bem, pior fico.
O meu corpo parece estar em contraposição com relação a mim e a mente. Não sabe se me obedece ou se ouve a porcaria do cérebro. No entanto, por hora, ele demonstra estar do meu lado.
Até o momento não desobedeceu nem um dos meus comandos. Enquanto a mente o incentiva a fazer algumas loucuras. Como a de socar a parede de uma das casas que estamos passando agora.
Eu já havia feito isso quando estava com raiva e o resultado não foi nada bom. Levou dias para as minhas mãos se curarem. Pegar uma arma e apontar para o peito de alguém. Na época que mexia com armas de fogo era divertido.
Porém, depois passei a perceber que não é nada legal fazer isso. Por mais que tenha alguns que mereça. Não vale a pena carregar esse peso pelo resto da vida
Ir atrás de alguns filhos da puta, e devolver todas as mancadas que já deram comigo. Fiz isso anos atrás, e não me senti melhor. Pelo contrário, passei a me achar pior do que eles...
Enfim, nada que eu já não tenha feito antes. Talvez por saber a sensação que é, o corpo não esteja dando trela a minha cabeça.
Na volta para casa, foi feita uma pequena alteração. Passamos em um restaurante. O único que serve comidas boas e baratas no bairro.
Emma no início não concordou com a ideia repentina, dizendo que não podíamos gastar tanto. Porém, depois de ver a tristeza estampada nos rostos pidões ela amoleceu o coração e mudou de ideia.
Almoçamos e mais conversas são jogadas fora. Eu participo da maioria. Terminamos os nossos pratos. A Emma paga a conta e seguimos para o velho casarão
Enquanto a diretora procura as chaves na sua bolça, Camille se aproxima sorrateiramente para perto de mim e sussurra:
— Já que estamos aqui fora... Vamos no mercado ali comigo? Vai ser rapidinho. — Balbucia de cabeça baixa, fingindo mexer no celular.
— Fazer o que lá? — Questiono também sussurrando.
— Comprar umas coisas para comer.
Sem me importar em disfarçar, olho para ela tomado pelo espanto.
— Você acabou de comer! — Comento em tom de voz um pouco alto o que faz ela me olhar feio.
— A fome uma hora vai voltar, gênio. E eu quero ter algo diferente para comer. — Explica impaciente.
Sempre gostei da comida da casa e até hoje nunca vi motivos para reclamar. Porém, se tratando da Camille nada é bom o suficiente para ela. A mesma agarra o meu pulso e sai me puxando.
No meio da rua, ela grita que vai ali e num piscar de olhos estará de volta. Assim, fui seguindo-a em direção ao estabelecimento.
Olhamos em torno de umas três prateleiras de marcas de bolachas diferentes e Camille não gostou de nem uma. Cansado de segui-la pelo supermercado, aviso-a que vou dar uma olhada nas prateleiras da frente.
E assim faço. Encontro umas variedades de bolachas bastante interessantes. Algumas são novas e parecem ser ótimas. Já estou imaginando o gosto delicioso. Já que estou aqui, é o jeito comprar também.
Agacho-me para ver as da parte de baixo e ouço cochichos. Não dou muita importância e continuo a observar os rótulos.
Porém, passo a prestar atenção no que as mulheres dizem quando ouço o meu nome em meio aos murmúrios. Para ouvir melhor finjo olhar os preços.
— “Um rapaz tão bonito... Pena que não tem família.”
Um frio toma o meu corpo fazendo-me ficar imóvel.
— “Muito bondoso e gentil. Será que ele trata as pessoas com tanta simpatia porque nunca teve afeto familiar?”
A senhora indaga. De repente, respirar torna-se difícil.
— “Coitado! Não se casará tão cedo. Qual moça vai querer dizer a seus filhos que eles não têm uma avó ou avô por parte de pai?”
A caixa torácica parece encolher e comprimir os meus órgãos. Causando-me uma dor aguda. As lágrimas começam a acumular nos olhos.
Sem me dar conta, os meus dedos se agarram na prateleira de cima a apertando com força. A carne começa a reclamar de dor e eu continuo a apertar, na tentativa falha de controlar a raiva.
Lutando para normalizar a respiração, não percebi quando Camille se aproximou. Ela toca no meu braço e o recolho rapidamente ainda encarando os preços de algumas bolachas. Por conta das lágrimas, enxergo tudo embaçado.
— Você está bem? — Questiona tentando olhar o meu rosto.
Ouvindo os cochichos ela para repentinamente para escutar.
— “A mãe dele não o abandonaria pela cor da pele não é? Ela não é tão escura. Eu acho bonito.”
Seguro a prateleira com o triplo de força, sentindo o corpo tremer e a raiva me dominar. Camille sai do meu lado e caminha apressada em direção as mulheres.
Retomo o controle dos comandos e levanto-me passando apressado pelo grupo. Quando saía ainda pude ouvir Camille esbravejar com elas.
— Bando de fofoqueiras infelizes. Vão cuidar da vida miserável de vocês e deixa o Eri...
Fujo despedaçado para o mais longe possível daquele lugar. A minha goela arde tanto, tornando impossível respirar algumas vezes.
Ver as pessoas desse bairro virou um veneno letal para mim. Não quero que elas testemunhem o meu estado.
Não quero dar mais um motivo para o meu nome estar na boca de todos.
✯✯✯
Tentei me acalmar de todas as formas. Olhando firme para a calçada onde piso e concentrando-me em meus passos. No entanto, não adiantou nada.
As lágrimas que segurei bravamente por todo o caminho, rolam aos bocados pelas minhas bochechas.
As palavras daquelas senhoras ressurgem como fogo em minha mente acompanhada da dor, angústia, solidão, tristeza... Sentimentos esses que reprimi até então.
Uma amargura tão profunda toma-me o peito, tornando as coisas ao redor opacas e sem vida.
Transformando tudo no mais profundo breu. Talvez a minha alma sempre esteve desse jeito.
Escura, sombria e dominada pela melancolia. Meu coração dói tanto, a ponto de parecer que a, mãos esmagando-o com unhas tão afiadas penetrando a carne do mesmo.
De cabeça baixa vejo as minhas lágrimas caírem e formarem pequenas manchas arredondadas na calçada por onde ando.
Esbarrando vez ou outra em ombros alheios, sei que sou alvo de olhares curiosos.
Esses, que com certeza são os que me jugam, que tem pena e os que mal se importam.
Não conseguindo mais andar, devido o corpo ter se tornado extremamente pesado. Entro em um beco não me importando com o odor desagradável de podridão.
Sem forças para fazer qualquer movimento brusco, deixo o corpo cair ao lado de uma lixeira. Aqui, sozinho nesse lugar escuro, finalmente posso sofrer em paz.
O meu choro silencioso, transforma-se em altos e frenéticos soluços.
A cada pranto entrecortado de suspiro que sai, o corpo estremece e a dor aperta mais. Sentado, coloco os braços em cima dos joelhos e abaixo a cabeça.
Fecho os olhos com força. As lágrimas continuam a jorrar, molhando a minha calça. Pingos gélidos começam a cair sobre o meu corpo curvado e em pouco tempo transformam-se em uma chuva pesada.
Não conseguindo ficar mais encolhido, estiro as pernas e encosto as costas na parede.
Queria que a chuva levasse de mim toda essa dor e desespero. Igual à enxurrada que passa do outro lado da parede do beco.
Carregando tudo. As sujeiras, as impurezas e as bactérias que ali proliferaram. Quero de todas as formas me livrar disso, livrar-me de mim próprio.
Com a água suja se aproximando ligeiro das minhas pernas, a contra gosto forço o corpo a se levantar. Um pouco bambo, escoro na lata de lixo enquanto recupero o equilíbrio.
E novamente passo a caminhar pela rua desorientado. Em todos os sentidos. Da vida. Do lugar onde estou. Quem sou eu e por que diabos fui abandonado...
Em um gesto inconsciente, as minhas mãos se movem e segura o coração da pequena corrente.
Mesmo sofrendo por conta da ausência da minha família, não consigo me desfazer desse maldito colar.
Queria com todas as forças, ah como queria... Me livrar dessa amaldiçoada esperança de um dia conhecer ao menos a minha mãe.
Se conseguisse me livrar desse sentimento de merda, a minha vida voltaria a ser como antes. Pacífica.
Mas não, eu tinha que descobrir que a minha mãe está viva e sair procurando que nem louco em todas as residências de antigos proprietários com o sobrenome Evans.
Eu tinha que alimentar essa porcaria de esperança. E agora estou aqui, mergulhado na imensa tristeza e desespero.
Tudo que acreditei um dia, já não faz sentido. Saber que a minha realidade poderia ser outra, me faz questionar o que já vivi.
E ao fazer isso, entrei em um mundo, o qual não consigo sair. Não consigo me livrar. O dá incerteza.Gostou? Não se esqueça de deixar o seu voto e comentário.
Feliz 2021 pro cês tudim!!!🧡❤️
Ai, gente, vão preparando o coraçãozinho aí viu. As coisas agora vão ficar um pouco complicadas💔. Mas lembrem-se, nada dura para sempre.
Próximo capítulo em breve...
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Te Guiando No Subúrbio
RomanceVencedor do THE WATTYS 2022 🏆 Abandonado recém-nascido em um orfanato, Eric Evans aventura-se por toda a cidade através de buscas incessantes e muitas vezes perigosas, tendo que lidar com a frustrante falta de pistas concretas que possam levá-lo a...