Capítulo 18

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Por que estou vivo?


O cheiro forte de substâncias ilícitas emana porta afora, dando a ideia do que se encontra lá dentro. No entanto, se é para saber o endereço fixo da minha mãe, esse mero detalhe, pouco importa.

Tenho certeza que quero entrar nesse covil, contudo há algo me impedindo de dar um passo adiante. Talvez seja pelas risadas e falas cobertas de maldade, me incentivando a continuar, que meu corpo parou de obedecer aos meus comandos.

Será que estou fazendo a coisa certa?

O questionamento surge sem motivo aparente, me fazendo despertar do suposto transe em que me coloquei. Pisco algumas vezes retomando os sentidos. O que antes passava de meros ruídos e falas desnorteadas, tomam formas e meus olhos vagam analisando o rosto de cada um presente nesse pequeno círculo, lotado de marmanjos perigosos.

As falas me incentivando, continuam a ser ditas com maior força de convicção. Volto a encarar a porta de tamanho médio entreaberta, respiro profundamente dando passos decididos. Se for preciso morrer para ter alguns minutos e fazer algumas perguntas a Eleonor Evans, assim farei.

Risos e assobios de felicidades soam, enquanto eles dão espaço para eu passar. Frases do tipo: “É isso aí garoto!”, “Hoje teremos um pouco de diversão”, “Até que enfim pegaremos um deles” são ditas constantemente e mesmo sabendo o que cada uma significa, ambas não me causam amedrontamento.

É como se o medo, o desespero, a aflição e a dúvida tivessem sidos retirados do meu sistema límbico.

A um passo de entrar pela porta, sinto duas mãos serem pousadas sobre o meu ombro. A da direita segura com firmeza sem me causar dor. Já a da esquerda, aperta com força, obrigando-me a olhar para trás. Não sei se estou alucinando ou se fui atingido por alguma bala e estou morrendo. A ausência da dor provocada pelo projétil de ferro, é que me dá a certeza de que ainda não bati as botas e não fui atingido por nada.

— Tá querendo morrer, garoto burro! — A voz grave do Boris, repleta de ira, soa fazendo reinar um silêncio ensurdecedor.

Não consigo responder nada, apenas olho-o confuso.

— Está fazendo o que aqui, Eric? — Reconheço o timbre e direciono as íris ligeiramente para o dono.

Os olhos castanhos claros de Maizom estão tomados, pelo que julgo ser medo e raiva. Eu só não sei o porquê deles estarem assim. A roda de homens se desfaz rapidamente. Alguns entram no barraco resmungando algo que eu não compreendo, mas posso imaginar perfeitamente do que se trata.

— Deixou o juízo descer para a cabeça de baixo, merda!? — Boris Respira fundo e depois nega com a cabeça fazendo o brinco dourado reluzir em sua orelha. — Quando trabalhava comigo você era mais esperto, garoto. — O desapontamento está explícito no rosto dele.

— Vamos. — Um dos braços de Maizom passa pela minha cintura e o mesmo começa a se mover forçando-me a fazer o mesmo.

Por não saber ao certo o que está acontecendo comigo, apenas caminho desorientado. Boris entra em seu carro batendo a porta com força, saindo logo em seguida com o automóvel em alta velocidade.

— Eric quantos dedos há aqui?

— Dois. — Respondo pondo-me a caminhar para onde estava agora a pouco.

Com muita dificuldade consegui traduzir o endereço anotado atrás da foto. O barraco que ia entrar, é o lugar que a minha mãe também morou. Maizom passa por mim, parando a frente.

— Eric!

Ignoro-o desviando do mesmo, voltando a caminhar.

— Para! — Maizom ordena.

— Tenho que entrar naquele lugar.

Ele passa mais uma vez na minha frente e para, bloqueando o caminho. Isso já está me deixando irritado.

— Está mesmo querendo se matar?

Meus olhos vagam de encontro aos dele.

— Porque alguém me mataria? — Retruco.

— Prestou atenção onde quer entrar? Não é preciso muita informação para saber que aquele barraco é o ponto de encontro de traficantes perigosos.

— Você não entende Maizom, eu preciso entrar ali e eu vou entrar!

Encaro-o na esperança de que ele compreenda o recado e saia da frente, porém Maizom não se move e contra a minha vontade, empurro seu ombro para trás a fim de retirá-lo da frente. No entanto, ele agarra os meus pulsos e olha profundamente em meus olhos.

— Você pode estar querendo se matar entrando ali, mas hoje você não morre porque não vou deixar!

Aperto meus punhos e tento desvencilhar das suas mãos firmes, porém sem sucesso, e isso só faz a minha raiva triplicar. Com o dobro da força usada da última vez, liberto-as e passo a empurrar o peitoral de Maizom da minha frente. Ele agarra novamente os meus antebraços e dessa vez, me puxa acolhendo-me em um abraço desajeitado.

Sentir o seu coração bater apressado junto ao meu, seus braços ao redor de mim e o seu cheiro alucinante, coloca-me em transe. Eu juro que já tentei me livrar desses sentimentos inoportunos e bestiais.

Já tentei me convencer de que Maizom é apenas um conhecido que precisa de mim para ajudá-lo a distrair a sua mente, como ele havia dito quando me devolveu o colar. Entretanto, nem assim, parei de sentir essas coisas por ele.

Com a força de não sei de onde, empurro-o para longe e passo a encarar os seus olhos. Ficar grudado a ele não vai ajudar a parar o que sinto. Esses sentimentos de merda.

A vontade que estava de entrar naquele barraco se esvai, dando lugar a um formigamento intenso na minha barriga, e por algum motivo, não sei o que fazer. A vontade de chorar surge, logo trato de engolir o choro e acabo fazendo o inesperado.

Caminho, pouco até Maizom e lanço-me em sua direção. Preciso de refúgio e o meu cérebro o reconheceu como sendo um adequado, mesmo o tendo rejeitado segundos antes. Logo sinto a minha cintura ser envolvida por seus braços fortes e suas mãos descerem para o meio das minhas costas. Seus dedos contornam de leve a linha da minha coluna em movimentos lentos e satisfatórios de vai e vem.

O aperto tão forte querendo que o mesmo sinta o que sinto. As coisas ao redor transformam-se em meros borrões, dando-me a impressão de ser somente eu e Maizom nesse pequeno gramado, ao lado da rua iluminada pela fraca luz do poste elétrico.

Foram longos os minutos até eu afrouxar os meus braços e ele fazer o mesmo. Afasto-me contra a minha vontade, não podendo curtir o momento do jeito que desejo.

Longe dele e com a visão voltada para baixo, tento pensar no que fazer para retirar nós dois desse lugar banal, mesmo estando com um embaraço grande na mente. Movo lentamente na direção que fiz algumas horas, ouvindo Maizom me seguir. Aqui não é seguro para ele e muito menos para mim.

Lutando contra os pensamentos que me recrimina por não ter levado Maizom a mais um lugar diferente e não ter entrado no barraco para encontrar outra pista útil, vou em direção ao estacionamento usando um atalho para não passar na parte movimentada da cidade.

Os olhos atentos de Anthony, me analisam ao passarmos por ele. Meu estado não está dos melhores. Caminho até o carro de Maizom parando pouco a sua frente, esperando seu dono passar por mim. Porém, ele não faz o que previ e eu tenho que me virar para ele.

— Desculpa mesmo! Eu... Prometo que depois compenso o dia perdido de hoje.

Maizom nada diz, apenas mantém o olhar que aparenta enxergar a minha alma. Não gosto disso. Ficamos poucos segundos nos encarando quando decido ir embora. Olhá-lo fixamente tornou-se doloroso para mim.

— Tchau!  — Pronuncio dando as costas.

Paro no mesmo instante ao ver um corpo estranho entrar no meu campo de visão. Engulo em seco quando Maizom para a uma distância média de mim.

— Não faça essas loucuras! Você se põe em perigo e preocupa quem se importa com você. — Respira fundo com os olhos fixos nos meus. — Tchau! — Responde e sai.

Não me movo por um instante tentando assimilar o que ouvi. Tendo a certeza acabo por sorrir, ainda que sem a intensidade de antes, e ponho-me a caminhar para fora.

✯✯✯

Com os olhos ardendo e as pálpebras pesadas, dou glória aos céus por terminar a bateria de exercícios. Por conta dos treinos para o novo campeonato, os trabalhos que perdemos, foram dados a nós para serem entregues ao longo da semana. Resumindo o meu dia, basicamente passei dentro desse quarto quase derretendo de calor.

Desvio a atenção para a fotografia em cima da mesinha, perto do abajur, e a culpa retorna. Venho o dia todo tentando ignorar esses pensamentos infelizes. Desligo o computador e na tela vejo o meu estado. Olheiras profundas, rosto abatido e tomado por uma seriedade, a qual jamais esteve presente.

Prestes a me levantar, vejo Camille entrar no quarto aos prantos, causando o aumento dos meus batimentos cardíacos. Sem pensar duas vezes, deixo de lado a minha melancolia e levanto sendo tomado por uma tontura que logo passa. Sento ao seu lado e ela se agarra a mim.

— O que aconteceu? — Passo a mão de leve no seu longo cabelo preto escorrido.

Ela nada diz, apenas continua a chorar e a soluçar fortemente, aumentando o aperto no meu peito. Opto por não fazer nem uma pergunta a mais, apenas a deixo por para fora a sua tristeza e dor. Logo, os minutos se vão e ela aparenta estar um pouco mais calma.

— Quer me contar o que aconteceu? — Tento mais uma vez.

Camille funga. Afasta-se de mim e passa as mãos pelo rosto, limpando as lágrimas.

— Promete que não vai fazer nada com ele?

Eu sabia que era culpa daquele verme. Meu sangue ferve aumentando o fluxo em minhas artérias, provocando um calor lancinante no meu rosto.

— O que o maldito fez com você?

Ela demora para dar a resposta. A minha raiva triplica aos poucos.

— Uma das meninas me mandou um vídeo onde ele beija outra garota.

Desvio os olhos dos dela na tentativa de evitar que a mesma veja o meu ódio, e para tentar me controlar, aperto os punhos.

— Por favor Eric! Não faça nada. Ele ainda é meu namorado.

Incrédulo por estar ouvindo isso, volta a encará-la.

— E você ainda chama aquilo de namorado? — Sorrio irônico negando com a cabeça.

— Tenta entender, e..eu amo ele e... — Interrompo-a.

— Camille você sabe perfeitamente que seus sentimentos por ele não são correspondidos. Ele apenas te usa e você ainda insiste em ficar com um merda daquele?

— Eu juro para você, Eric, que já tentei esquecer ele, mas não consigo.

— Como não, Camille? — Minha voz sai alterada e levanto da cama.

— Se você gostasse muito de alguém e não fosse correspondido da mesma forma que eu, você saberia perfeitamente o que é passar por isso.

Abro a boca para retrucar, mas nada sai. Isso me atingiu em cheio. Sim, Camille! Eu sei perfeitamente o que é sentir isso.

— Tem razão, não sei como é. — Minto. — Mas, com plena certeza não me rebaixaria a tal nível a ponto de deixar uma pessoa me fazer de trouxa e capacho por ter uma queda por ela. Aprenda a se amar, Camille, e só assim você saberá se dar o devido valor e não deixará homem algum te tratar de maneira tão vergonhosa e desrespeitosa.

Ela permanece em silêncio e abaixa a cabeça. Ajoelho-me na sua frente atraindo o seu olhar marejado.

— Prometa para mim que vai tentar se afastar dele? — Pego uma mecha do seu cabelo que caía sobre o seu rosto e a coloco atrás da orelha.

Percebo relutância por parte dela para responder.

— Sim.

— Olhe para mim ao falar, Camille.

— Sim, Eric, eu prometo a você que vou tentar me afastar dele.

— E quando tiver recaídas, lembre-se, meu quarto fica logo ao lado. — Vendo o sorriso surgir em seu rosto, acabo por me alegrar também.

✯✯✯

Presenciar a Camille naquele estado por conta daquele maldito, e ainda por cima, descobrir que o endereço anotado atrás da foto não existe, e que quase morri à toa, me faz sentir-me um verdadeiro energúmeno.

O que sou mesmo, um energúmeno dos piores existentes. Não tenho mãe, ela me jogou naquele orfanato provavelmente porque se casou novamente e não queria criar um filho que não fosse do atual marido. E eu aqui, o idiota criando fortes expectativas de que a mesma possui um motivo plausível por ter me deixado para trás. Aperto o colar com força entre os dedos.

Os inúmeros comentários maldosos, racistas e até mutiladores que já fui obrigado a ouvir sempre que uma família aparecia para nos adotar, não só deles como também dos vizinhos, e mesmo assim, ainda acreditava que a minha vida um dia iria melhorar logo que achasse a minha mãe. Naquela época, não fazia buscas, mas sentava em frente ao portão e passava horas olhando para a rua ou brincando na frente dele. 

Quando fui crescendo e percebendo que ela não viria, tratei de substituir tais pensamentos de que ela havia me abandonado para o de que eu teria que ir ao seu encontro. E assim fiz. Quando completei dezoito anos, Emma me deixou sair para procurar pistas dela. Mal sabia eu que estaria arruinando ainda mais a minha vida.

Aperto os olhos com toda a força que tenho e a imagem dele me vem à mente. Ah... Aquele cheiro. Aquele maldito cheiro que me faz respirar fundo e provoca um frio intenso na minha barriga. E para acabar de vez comigo, passei a sentir essas malditas coisas estranhas por Maizom.

Dói, dói muito, sentir o meu coração em uma agonia louca querendo estar próximo a ele e não poder abraçá-lo da forma que desejo. Não poder dar o meu carinho, a minha atenção. Querer falar e não poder por tudo isso para fora. E o que me resta, é sofrer por sentir e não poder me livrar de tudo.

Queria arrancar o meu coração e colocá-lo dentro de uma caixinha para olhá-lo diariamente e saber que o causador de toda a minha dor já não está mais em mim. Que o mesmo, está preso com a sua bondade e que não causará mais nem um dano, nem ao seu antigo portador e a mais ninguém.

Encosto a cabeça na parede da cobertura abandonada, enquanto o rio de lágrimas desce rosto a baixo.

Por que estou vivo?

Minha vida é uma merda! Eu sou literalmente uma merda! Estou somente fazendo peso extra na terra. Ah, como eu adoraria estar fazendo drama, porém infelizmente essa é a realidade sobre mim. Apenas entorto o pescoço vendo a figura trajada com um terno escuro aparecer no ambiente. Volto o rosto para o lugar de antes. É isso que me irrita nele, Maizom não diz uma só palavra, mesmo diante da situação como a minha.

— O que faz aqui? — Que eu saiba não compartilhei a localização com o mesmo.

Ele nada diz.

— Quer que eu desenhe a pergunta para você entender? — Encaro profundamente os seus olhos claros.

Sei que não é tratando ele de forma rude que vou conseguir me livrar da dor que sinto. Talvez eu só precise ficar longe dele. Me afastar de tudo o que me faz mal, ainda que doa o triplo fazer isso.

— Servindo de companhia.

— Quero ficar sozinho!

Minha fala não serviu de nada, pois o mesmo permanece onde está, inabalado com as minhas palavras ríspidas.

— Solidão não ajuda em nada na hora do desespero.

Tudo o que menos preciso é de belas palavras.

— Você tem ao menos noção do que é estar sozinho? De não ter um pai, uma mãe, ou seja lá que diabos for? Você sabe o que é sentir saudades de alguém que você só sabe o nome? De estar sendo alvo constante dos tombos da vida? De ama... — Notando o que estava prestes a dizer, deixo a frase incompleta.

Ele nada fala, apenas me observa com os mesmos olhos indecifráveis de antes.

— Não, você não sabe o que é nada disso! Tem uma vida excelente. Então me faça o favor de não vir com essas palavras bonitas para cima de mim.

E daí que ele não nasceu em berço de ouro? Tenho certeza de que não passou nem pela metade do que vivenciei nessa porcaria de vida miserável.

Desvio a atenção dele e volto a fitar o nada. A raiva passeia pelo meu corpo contaminando cada parte, transformando-me em uma verdadeira pilha de nervos que derrama lágrimas aos bocados. Noto o vulto de algo curvar sobre mim e dedos trazerem meu queixo para perto do rosto que conheço bem.

— Aprenda a lidar com os problemas. Não aceite ser vítima de si mesmo. E não afaste as pessoas de perto de você! — Consigo sentir a dor nos seus olhos. — Não suponha coisas ao meu respeito não tendo o conhecimento de como foi e é a minha realidade. — Sua respiração alterada se choca contra a minha.

Dito isso, Maizom dá as costas e sai porta a frente. Infiltro os dedos nos meus fios segurando-os com certa força. Se já não estivesse acostumado com as pessoas me deixando, certamente a dor seria maior. Levanto passando a derrubar tudo ao meu alcance.

O som de objetos chocando contra o chão e se quebrando, ecoa no prédio inteiro por vários minutos. Parado sem forças e com o corpo trêmulo, dobro os joelhos indo de encontro com o chão. Por que essa dor infeliz triplicou de tamanho?

Jogo-me de barriga para cima, no chão sujo do prédio largado à própria sorte e apenas fecho os olhos deixando as lágrimas caírem livremente.




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Essa parte foi dolorida para o nosso Eric. Infelizmente nem tudo é flores.

Próximo capítulo em breve...

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