Empurrãozinho.

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[ Timothée's POV ]

- Timmy. - Ouvi Charlotte chamar. - Vem cá um pouquinho. - Ela era uma de minhas irmãs também, e ela era linda, tinha uma beleza extraordinária, parecia esculpida a mão da maneira mais perfeita, cabelos loiros sedosos, um olho azul quase transparente. Sua expressão era delicada. Me dirigi até ela.

- O que foi irmãzinha?

- Vamos voar hoje? Dar aquela volta ao mundo que a gente dava há um tempinho atrás? - Ela parecia bem disposta, e eu amava ver o mundo de cima, ver cada luzinha acesa, sentir as energias, o vento não era problema, nem a falta de oxigênio nos lugares mais altos, pois não tínhamos pulmões mesmo...

- Vamos. Quer chamar mais alguém? - Éramos vários - Não, gosto de ir com você. Eles falam que "tem mais coisa pra fazer". - E fomos.

A vista era indescrítivel, e a volta duraria muitas horas, eu nunca parei para contar, mas via o Sol se movimentando diversas vezes, demarcando os dias para os humanos. Começamos pelo extremo Norte, uma massa branca, era uma das minhas partes preferidas pois eu amava pinguins, ursos polares, a escassa urbanização ali transformava o lugar em um refúgio pacífico, realmente gostoso de se conviver. Mas era triste ao mesmo tempo, pois dava pra ver que a humanidade estava destruíndo a Terra aos poucos, o gelo estava diminuindo a cada ano, os animais estavam mais magros, a poluição era visível, assim como o aquecimento global. Muito triste.

Já haviam se passado algumas horas e estavamos nos direcionando para o Leste, e eu via que Charlotte aproveitava em silêncio, apenas apreciando a beleza da criação.

Estranhamente, senti uma coisa diferente. Um sentimento estranho. O que era aquilo? Uma falta de algo, alguém. Será que isso era o que os humanos chamavam de saudade? Que coisa estranha. Não era um sentimento negativo, era só... novo pra mim.

- Charlotte? - Ela me olhou rapidamente e paramos de voar, ficando só estáticos flutuando. As asas serviam para nos direcionarmos melhor, para adquirir velocidade, e a capacidade de simplesmente flutuar era nossa, do nosso corpo, vinha da nossa energia interna. - Você já sentiu saudade?

- Aquele negócio de sentir falta de algo, tipo um vazio que só se completa com uma coisa ou pessoa específica?

- Isso mesmo, pelo jeito você já, né? - Ela assentiu, confirmando minha suspeita. - De que?

- Do que estamos fazendo agora. Eu gosto de voar Timmy, de ver tudo isso, e quando eu estou desempenhando algumas funções me dá saudade de sair por ai voando. Por que?

- Estou sentindo agora. De observar uma menina. Acho ela curiosa. Ela é um meio de eu conseguir ter uma ideia do que um corpo físico vivencia, ela demonstra e projeta o que sente, aí facilita. Os humanos em geral não fazem isso frequentemente, no caso sentir as coisas dessa maneira, explorar sua capacidade sensorial. Eles estão presos em uma tela.

- É, já reparei. Você quer parar, né? Para ir vê-la. Vá. Eu continuo sozinha. - Ela abaixou a cabeça.

- Não quero te deixar. Sei lá, posso ir depois.

- Timmy. Eu entendo, sério. Vai ser até um alívio me livrar de você. - Ela brincou, eu gargalhei automaticamente. Ela era engraçada e eu sabia que ela amava explorar sozinha. Dei um sorriso, eu abri as asas novamente e me direcionei a França, mais especificamente Paris, aonde ela morava. Vi Charlotte alçando voo em uma velocidade extraordinária. Ela olhou para trás e acenou antes de ir.

Sabia onde ela morava, então fui atrás. Era bom ser invisível ás vezes. A vi pela janela, estava preparando um jantar. Adentrei o apartamento, sentei na bancada. Vi que era macarrão com molho branco, e a sobremesa era mousse de chocolate. Poxa, ela realmente sabia cozinhar e mantinha os olhos nas panelas sem dispersar a atenção, com exceção de quando fechava os olhos para cantar. Era até engraçado vê-la cantando uma música com tanta emoção, achando que ninguém a via. Mas eu via.

Vi que ela começou a picar o chocolate rapidamente em cima de uma tábua. Mas ela ainda era meio desastrada, prestava atenção mas sua cabeça ás vezes vacilava, e vi que ela ia cortar o dedo. Desci rapidamente da bancada e dei um empurrãozinho extremamente sutil para evitar que ela sangrasse. Ela parou por um momento e olhou para os dedos. Fiquei observando para ver se ela não percebeu nada. E ela continuou cortando. Ufa.

Mas espera, o que era aquilo? Preocupação? Outro sentimento que eu também não tinha tanta experiência. Em todo esse tempo, eu não me preocupava muito com as coisas, pois sabia que tudo estava de acordo com o que deveria ser, não era meu papel me preocupar. Estranho. De novo.

Fiquei ali mais um tempinho, e então vi que a janta estava pronta. Eu estava justamente esperando a revisão dela com relação a comida.

- HMMMMM - Ela fez uma cara muito boa. Juntou os dedos e deu um beijinho na ponta. - CHEF'S KISS - Ela disse. Eu até dei uma risadinha. - Me superei dessa vez, isso está tão bom. - Ela falava... sozinha? Engraçado. 

A observei se deliciando com o jantar e a sobremesa. Analisei cada expressão. Vi ela lavando a louça. Eu sempre me perguntei como era se molhar.

Depois ela foi direto ao celular, vi que ligava para alguém.

- Lilian. Oi, como você está BFF? - Hm, essa é nova, não sabia que ela tinha uma melhor amiga. - Sim, sim. - Fez uma pausa. - JURA? - Ela gritou. - Meu Deus que bom, amanhã você vem aqui e me conta isso do começo. É, umas sete e meia tá bom. - Outra pausa. - Ah, eu? Bom, eu venho sentido uma coisa estranha desde ontem. Uma paz. Tipo, eu estou muito calma, muito tranquila. Senti ontem no café da tarde, e agora na janta. - Ela ficou em silêncio e começou a rir. - Não tonta, não é por causa da comida. Tá. Vejo você amanhã então. Beijo. - Ela desligou.

Vi que se dirigia para o banho. Aquela era minha hora de ir. Saí de lá e não abri as asas. Só flutuei. Me sentia leve. Deixei meu corpo fluir e subir ao céu.

Eu trazia paz a ela. Repeti isso a mim mesmo várias vezes. Eu me sentia feliz. No meu rosto, um sorriso. Eu trazia paz a ela.

Angelic.Onde histórias criam vida. Descubra agora