Outra Lua

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Eu corria desesperada, arfava, tentando continuar respirando. Até que me deparei com uma construção inacabada e entrei ali, sem me importar se era habitada por pessoas piores do que aquela que me perseguia.

Estava escuro e precisei tatear as paredes para me sentir um pouco segura. Entrei e me escondi em um cômodo sujo, pois cheirava muito mal, mas aparentemente seguro.

Passei algumas horas naquele lugar. Quando me dei conta, estava agachada no chão poeirento. Fui devagar até a janela, coberta por tapumes de madeira e tentei ver o que tinha lá fora. Gelei ao ver um comparsa de Juriel, meu ex-namorado possessivo.

Juriel e eu nos conhecíamos desde que éramos crianças, começamos a namorar na adolescência, logo que ele iniciou o uso de hormônios para sua transição física. Sempre nos entendemos bem, pois eu sabia que ele era diferente e o apoiava mesmo com muitas pessoas contra ele. Éramos unha e carne, não o abandonei quando foi mandado embora de casa e isso nos deixou mais ligados ainda. Uma vez ele disse todo inseguro, que sempre quis me beijar, mas que tinha medo e não gostava do próprio corpo. Aceitei que precisava estar preparado para aquele momento e o apoiei, pois ele sempre foi muito doce e gentil comigo.

A mãe dele sempre dizia que nós íamos nos casar juntas, cada uma com o nosso príncipe encantado. E Juriel sentia asco só de ouvir aquilo. Tinha duas irmãs e um irmão. Elas se casaram e formaram famílias. E cada vez que uma delas anunciava que estava grávida, o pai dele jogava a indireta de que logo seria Juriel a dar mais um netinho para ele.

Diante dessa pressão quase velada, Juriel se enfureceu e cortou o cabelo que batia na cintura e berrou para a família toda em um almoço de domingo que jamais se casaria com um homem, pois gostava de mulheres.

— Eu sou homem! — bradou.

Aquilo arrancou gargalhadas dos cunhados idiotas que estavam presentes. Juriel virou a mesa do almoço, derrubando tudo e pediu que fosse levado a sério. Ele tinha apenas dezesseis anos e para a família foi a pior coisa que fez ele na vida.

Foi segurado pelos cunhados e espancado pelo pai. Só não foi morto porque Júlio, irmão dele, chegou na hora e o defendeu dos covardes.

Acompanhei Juriel ao hospital enquanto Júlio ficou discutindo com a família o que aconteceria com ele a partir daquele momento. O pai dele decidiu que só tinha três filhos. E ele, Júlio, era o único filho homem que tivera.

Júlio chegou ao hospital completamente desolado. Notei em seu semblante que a conversa com a família não fora nada bem. Ele me abraçou e chorou no meu ombro. Não perguntei nada, mas ele disse como tudo tinha acontecido.

— E agora? Para onde o Juriel vai? — Eu já o chamava assim, pois ele já havia me dito como queria ser chamado.

— Vai ficar na minha casa, Dafne. Não vou largá-lo por aí, à própria sorte — disse com o tom de voz fanho, pois havia parado de chorar instantes antes.

O médico avisou que Juriel ficaria em observação. Júlio me pediu para ir para casa, pois ficaria com o irmão.

No dia seguinte, eu soube que ele teve uma parada cardíaca no meio da madrugada e precisou ser reanimado. Estava naquele momento na UTI. Fiquei morrendo de medo de ele morrer, mas tive o apoio do Júlio, que não me deixou surtar.

Júlio era advogado criminalista, morava sozinho e namorava à distância uma italiana, que fora ao Brasil uma vez apenas. Era o único membro da família que tratava Juriel no masculino.

Juriel passou três dias no hospital. Júlio não quis registrar queixa contra a família quando o médico indicou a polícia, e levou o irmão para terminar sua recuperação em casa.

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