Cada corte daquele era uma dor minha que se escondia. Minha vida era assim, desde que me entendo por gente, era essa tristeza profunda. Ninguém estava nem aí, minha mãe bebia mais que opala 71, estava mais preocupada com os homens que pagavam bebida para ela; a minha irmã mais velha estudava e morava no campus da faculdade. E o meu pai? O meu pai foi mais esperto, jogou o carro numa proteção de concreto e morreu na hora. Gostaria de ter sua coragem, mas não tinha, então eu me cortava. Me cortava porque aliviava as dores que eu não sabia bem onde eram e me distraía daquela realidade cruel e sem escrúpulos em que vivia.
Até quatro anos atrás eu sabia o que era sorrir, tinha amigos, um pai, uma família. Mas depois disso, quando o meu pai morreu – uns dizem que ele se matou, outros dizem que foi um acidente – eu só sei que ele está morto e eu lamento muito não estar ao lado dele neste momento. Tinha 14 anos e já tinha pensado em morrer 27 vezes só naquela manhã.
Depois que meu pai se foi, minha mãe se transformou numa pessoa que eu não gostaria nem de conhecer. Eu chorava o dia inteiro. As amigas da minha mãe apareciam em casa, elas conversavam e ela ficava bem. Minha irmã tinha amigas também, tinha uma que sempre ficava com ela lá. Disseram até que elas eram namoradas, mas minha irmã nem ligou, e quem espalhou a fofoca logo parou de falar demais. Depois de uns meses ela passou no vestibular de uma faculdade federal e então passava mais tempo lá que em casa; até que acabou conseguindo alojamento por lá e eu não a via quase nunca.
Minha mãe se recuperou rápido da morte do meu pai. Mas eu não, eu não conseguia aceitar que ele, o único ser que me notava, estava morto. Eu queria ir para onde ele estava, mas não tinha coragem de ir além dos pequenos cortes.
Um dia, minha mãe abriu a porta do meu quarto, acendeu a luz e me viu no chão, eu consegui sentir o cheiro forte de álcool que exalou da boca dela quando falou meu nome. Coloquei a mão na frente dos olhos tentando me acostumar com aquela claridade repentina:
— Mas que podridão é essa aqui? Alguém morreu? — indagou, debochada, com sua voz rouca de tanto fumar. — Nina, sai desse quarto. Vem comer. Toma um banho que você está podre, parece que tem um defunto em estado avançado de decomposição aqui dentro. — Ela disse, tentando abrir a janela que eu havia lacrado com papelão e pregos para ficar o mais escuro possível.
— Me deixa, mãe. Eu não estou com fome, não quero comer nada. — falei, e tentei colocá-la para fora do quarto.
Eu passei a semana toda ali naquele quarto, não sabia por que ela resolveu me incomodar justo naquele dia.
— Você vai tomar um banho e vai pra sala, uma assistente social vem aqui hoje e já disseram que se te virem sem cuidados vão te levar pro juizado de menores. Se quiser ser levada como uma bandida você pode ficar aqui, por mim tanto faz, mas se não quiser, tome um banho e venha comer e arrume esse quarto... — Ela explicou os motivos pelos quais estava se importando comigo. Não era comigo, era com ela mesma.
Eu olhei para a minha cama, nela tinha um buraco que me contornava e confortava, ela tinha sido meu refúgio nos últimos meses, eu passava a dormir dezoito horas por dia, mas há uns dias eu não estava mais conseguindo dormir. Não adiantava eu deitar, não adiantava nada, eu não conseguia fugir para outro mundo de sonhos e felicidades. Eu estava enlouquecendo. Precisava de remédios para dormir, mas onde conseguir remédios? Não tinha como. Minha mãe só tinha bebida, minha irmã não aparecia em casa, antes eu dividia o quarto com ela e agora eu vivia lá sozinha havia muito tempo.
Odiei saber que aquela assistente social iria lá em casa. Devia ser pelo fato de que eu estava sem ir à escola há mais de um ano, quando começaram a me zoar por causa da bebedeira da minha mãe, que não se contentava em só beber, ela tinha que passar vergonha na rua; acabou sendo filmada e viralizou no YouTube e em grupos do WhatsApp. E tinha o fato de eu ser extremamente burra e não conseguir aprender nada. Repeti o ano e minha mãe apenas assinou o meu boletim. Nem disse nada. Eu ia de mal a pior e resolvi não ir mais passar vergonha na escola. As professoras não estavam nem aí para nada, muito menos para mim.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Soneto
Short StoryColetânea de contos LGBTQ+ Esta obra é o primeiro volume do projeto Soneto misturando música, drama, comédia, Sci-fi em romances clichês. Todas as cores, todas as letras e vários amores.