A Piada Que Mata

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Meus olhos se encheram de lágrimas quando vi aquele corpo ali, naquele quarto de motel, com sinais claros de todos os tipos de violência.

— Está tudo bem, Flavia? — Meu colega, detetive Renan, quis saber.

— Sim — fiz um aceno de pausa para um policial que quis entrar. — Posso ver suas anotações?

— Claro. — Me entregou o bloco e pegou uma câmera fotográfica.

— Provável suicídio, Renan? Qual é, cara? Isso tá mais que óbvio que foi assassinato.

— Acho que você está muito abalada. Você conhecia esse traveco.

— Sai daqui, Renan! — Mandei para não explodir com ele numa cena de crime.

Peguei o celular e liguei para a Alessandra, a delegada.

— Alê, me faz um favor?

Claro. O que houve?

— Libera o Renan desse caso. Ele não está mostrando imparcialidade, isso pode atrapalhar.

Vou ver o que posso fazer. Você conhecia a vítima?

— Não. Vou investigar esse caso e quero alguém que queira fazer isso também. Além de altamente transfóbico, Renan está visivelmente querendo se livrar disso. Escreveu 'Provável suicídio' nas anotações. A vítima está cheia de sinais de violência.

Ok. — Desligou e voltei ao trabalho.

Renan fumava enquanto ria com outro policial que o acompanhava no cigarro.

Recolhi algumas possíveis evidências enquanto a legista examinava o corpo para liberar a cena. Fotografei as mãos da vítima. E as unhas postiças dos dedos indicador, do meio e anelar direitos estavam arrancadas. Procurei pelo local, e quando achei, as coloquei em saquinhos de coletas.

O Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo. Muitas vítimas sequer são reconhecidas exatamente pelo descaso. Já vi alguns. Eu tenho o cuidado de procurar saber o nome social, mas muitas vezes vi a imprensa colocar o nome civil. Sei que pode parecer bobagem, mas essas pessoas lutam a vida inteira por esse direito e nessa hora ter toda a sua luta invalidada é foda.

Aquela era Kettlyn Leah Turner e é assim que será reconhecida neste momento.

Fiquei sozinha na cena do crime. O corpo da Kettlyn foi removido para o IML. Verifiquei cada detalhe daquele quarto. Achei uma comanda de uma boate próxima dali e um cartão de visitas de um dentista da zona norte do Rio. Coloquei a caixa de evidências no carro e fui ver as imagens das câmeras de segurança. Consegui uma placa e um rosto, meio embaçado, mas era alguma coisa.

Alessandra enviou Milena Sampaio para me ajudar. Já salvei a vida da minha chefe algumas vezes, por isso, ela atendia aos meus pedidos, mas isso é história para depois.

Fiz algumas perguntas para os funcionários e pedi que os do turno da noite comparecessem à delegacia para prestar depoimento.

Milena foi falar com o pessoal da boate e eu fui à casa da vítima, ali perto. Kettlyn dividia apartamento com uma amiga, a também travesti, Sacha Luz. Depois de consolá-la por uns minutos, perguntei sobre a amiga.

— Ela saiu da boate por volta das duas da manhã com o João Guilherme. Ele é um cliente assíduo da boate, acho que é amigo do dono. — Sua voz estava rouca e olhos inchados. Ficou arrasada com a notícia.

— Sacha, eu quero botar o assassino da sua amiga na cadeia. Preciso de detalhes, ok? Ela tinha algo com esse João Guilherme?

— Ele havia assediado ela antes, mas ela sempre se esquivava. Morre de medo de "macho hétero" — colocou aspas nas últimas palavras. — Aliás, todas nós morremos de medo o tempo todo. Ela me conta sempre que se interessa por alguém. A gente só dança na boate, nenhuma faz programa, mas a infinidade de convites que recebemos, é incontável. Acham que nosso corpo é um leilão. Esse João Guilherme mesmo já me ofereceu muito dinheiro para passar uma noite com ele. Ele é bonitão, mas não vale a pena. É do tipo que faz piada e agride. Nunca o vi sair com uma de nós até essa madrugada.

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