Indecifrável

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Eu estava virando a segunda garrafa de vodca daquela noite. De repente, aquele lugar pareceu grande demais. E realmente era. Eu morava ali desde que saí da casa dos meus pais, mas nunca o senti tão imenso.

Tentei levantar e me senti zonza. Senti também algo molhado e pastoso nos meus pés descalços. Olhei para o chão, não consegui enxergar direito, minha cabeça girava.

Estava sendo assim todas as noites, desde que Pérola se fora. Eu continuava tentando levar a minha vida, afinal de contas eu já vivia antes dela, e minha ONG precisava de mim, inteira, para seguir funcionando. Mas estava muito difícil, toda a paixão com que eu pintava, com que eu expressava as minhas emoções, transformara-se em um pesadelo sem luz nem cor.

Eu amava pintar, esculpia também, mas minha paixão eram as telas, que ganhavam vida sempre que eu chegava perto. Meu intuito era deixar o mundo mais colorido, e apenas duas vezes em minha vida ele ficou escuro.

A primeira vez foi quando perdi um filho para um câncer agressivo. Eu tinha apenas vinte anos, lutei com todas as forças para que ele sobrevivesse, mas aquela maldita doença não pega leve com ninguém, muito menos com uma criança de um ano e seis meses.

— Nelita, você precisa ser forte! O Israel está inconsciente — disse o médico, com um semblante triste.

Eu sei que era o trabalho dele manter os parentes informados sobre os estados dos pacientes, mas naquele momento aquele homem vestido de branco, de cara cansada e olhar bondoso, havia acabado de esmagar o meu coração, tirar o meu chão, a minha razão de viver.

Foram oito meses de uma depressão profunda, eu só pensava em morrer, em ir ao encontro do meu bebê, que viveu tão pouco, mas que me deu grande alegria, mesmo depois das circunstâncias em que foi concebido: uma noite de bebedeira com o pessoal da faculdade. Eu o amei mais que tudo no mundo.

A minha ONG se chamava Instituto Israel Amaral. Eu tinha muitos planos para sua ampliação, mas para começo, recebi as crianças que estavam na lista de espera por creche.

— Eu não cobro mensalidade, mas os pais precisam arcar com as despesas pessoais dos filhos que ficam aqui — informei a um grupo de pais, que gostou da ideia de deixar seus filhos comigo.

O galpão era grande, era de uma fábrica de tecido do meu tio, que falecera e deixou para mim. A empresa dele falira bem antes de sua doença o assolar. No início, eu não sabia o que fazer com o lugar. Mudei-me para lá, comprei móveis e eletrodomésticos aos poucos. Até que surgiu a ideia da creche, que funcionaria dentro da ONG.

Comecei com oito crianças. Seus pais levaram colchões, alimentos e tudo o que eles precisariam para ficar ali até que retornassem de seus trabalhos para buscá-los.

A realização daquele sonho me libertou da depressão, e vi naquilo uma forma de representar o meu filho. Tudo funcionou bem por uns três meses, até que alguém fez uma denúncia, e meu galpão foi lacrado.

— Precisa de alvará de funcionamento. Não sou uma babá — avisei e comecei a correr atrás dos documentos.

Depois de dois meses, reabri a ONG, toda certa e com os documentos em dias. Seis meses depois de uma campanha pela vizinhança, consegui a ajuda de cinco voluntários, que passaram a trabalhar comigo.

Corri mais que o normal, pois alfabetizávamos as crianças. Eu trabalhava em paralelo e vendia as minhas telas. Com o dinheiro adquirido eu conseguia manter um pouco das despesas.

E assim, com doações de pessoas que sonhavam junto comigo, eu passei a manter a minha ONG, que também é meu local de trabalho e meu lar.

Minha natureza nunca permitiu que eu me relacionasse com homens, então, muito cedo, eu me vi 'sobrando' em casa. Recebi uma educação polida e religiosa, por isso sabia que o conservadorismo da minha família jamais aceitaria que eu vivesse com uma mulher. Então eu me adaptei ao meu mundo, à minha vida sozinha. Sofri horrores quando engravidei, e por não saber quem era o pai, fui julgada, criticada e acabei me tornando uma mancha na reputação ilibada da minha família. No entanto, não senti vontade de fugir daquela realidade, apenas criei a minha própria vida real.

Tive algumas relações amorosas, mas a grande paixão da minha vida foi a Pérola, uma cantora que se apresentava em bares. Ela fez um show beneficente na ONG. Eu me apaixonei por seu sorriso, olhar molhado ao dedilhar aquele violão e sentir a música que saía dele. Fui correspondida e me senti nas nuvens. Em pouco tempo ela se tornou o meu Sol. Confesso que tínhamos uma relação de fogo e gasolina. Precisei de muita paciência para aceitar a vida noturna dela, que sempre fazia um escândalo quando eu questionava quem eram as meninas das fotos, as quais ela sempre denominava como fãs.

— Fanáticas, né? Elas a seguem em todos os lugares.

— Meu amor, eu dependo delas. São elas quem me dão views no YouTube, quem ajudam a fazer propagandas dos meus shows.

Com aquela explicação, passei a tentar deixar o meu ciúme de lado e aproveitar cada minuto com ela. Até estava funcionando, mas ela passou a viajar muito.

— É o meu sonho, Nelita! Estou quase realizando o sonho de ser uma grande cantora. Quero conhecer o mundo, e quero que ele conheça e ame a minha música.

Naquela noite nos amamos depois que usei seu corpo como a mais bela tela da minha vida. Fiz uma arte na pele nua com os próprios dedos. Fotografei tudo e depois fui puxada para a lona que protegia o chão. A mesma arte do corpo dela passou para o meu, transformando-se em algo que chamei de amor. Um borrão indefinido e difícil de separar as cores, difícil de entender. Indecifrável como o maior sentimento do mundo é.

Pérola sempre deixou claro que gostaria de viajar para conhecer o mundo. Jovem, deslumbrada, sonhadora. Eu, na idade dela, estava procurando me formar, em busca da minha independência. Ela preferia viver naquela vida de cantar por uns trocados e não parar para estudar ou valorizar o próprio talento.

Era muito talentosa. Espalhei fotos nossas pelo ateliê. A taça que ela mais gostava ainda estava lá. Esculpi seu busto num inebriante momento de êxtase romântico.

Até que ela se despediu, levando consigo o meu chão.

— Eu sou livre, Nelita! Você tem uma grande raiz aqui. Se eu a chamasse para me acompanhar, você diria não, por causa da sua ONG, por causa das suas raízes. Coisa que eu não tenho e não quero ter. Não agora!

Eu escorreguei na tinta — o líquido pastoso sob os meus pés — caída no chão e sem querer quebrei o busto dela, esculpido em argila, rico em detalhes. Fui às lágrimas novamente e tomada de raiva e decepção, passei a mão pelas nossas fotos, jogando todas no chão e ouvindo o estilhaçar de vidros.

Em lágrimas e zonza pelo álcool, peguei um balde de tinta preta e joguei nas telas que havia ali, as que foram inspiradas nela. Outras eu apenas cobri a pinceladas, para representar o meu luto.

Deitei exausta e fiquei ali até o amanhecer, quando saí do chão e tomei um banho. Logo as crianças chegariam. Tomei um café forte e fui para a recepção. Ignorei totalmente a bagunça que eu havia feito no ateliê. Aquela alegria das crianças, que tanto me animavam, naquele dia não estava surtindo efeito, e eu estava pensando em quanto tempo faltava para que a noite chegasse, apenas para que eu pudesse me isolar novamente e beber, na intenção de diluir aquele sentimento que corroía o meu peito. O sentimento vagabundo, que foi apenas usado enquanto foi conveniente, mas que pouco valia.

Na hora do almoço, enquanto as crianças dormiam, eu fui ao ateliê e comecei a limpar a bagunça que havia feito. Recolhi todos os cacos e embalei em folhas de jornais. Os catadores não mereciam se cortar. Ferida ali já bastava eu, dilacerada por dentro. Olhei para as minhas mãos, elas sangravam, mas eu não sentia dor alguma. Olhei ao redor e vi que tudo estava escuro, preto, exatamente como o meu interior naquele momento.

No meio daquela bagunça, vi o sorriso dela. Agachei e peguei a foto, ainda na moldura, mas sem vidro.

— Eu sei que você fará grande sucesso! Sei que será uma grande estrela e vai brilhar no céu de alguém — disse em lágrimas.

A minha pergunta era apenas uma: por que não poderia ser uma estrela no meu céu?     

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