O Coração de Tleos

Prólogo

Kyle parou de roncar assim que o sonho começou. Seus ombros se contraíram de tensão e sua respiração ficou curta e áspera. Sua esposa, ao seu lado, virou satisfeita, inconscientemente aproveitando o súbito e relativo silêncio.

Seus sonhos, desde que tivera contato com o Oráculo décadas antes, eram mais vívidos, cheios de texturas, aromas e formas nítidas. Esse era uma variação do mesmo sonho que vinha com frequência nos últimos meses. Dizia respeito à última visão que o Oráculo lhe concedeu.

Ele estava na torre de sua casa, olhando pela janela estreita, observando os contornos das massivas construções de pedra bege da região central da Cidade de Tleos. Adiante do jardim de sua casa, alguém chegava.

Alguém que sempre soube que viria.

Uma imagem desfocada, imprecisa, que nunca foi capaz de reconhecer na visão original. Mas ele sabia o que aquela visita significava: era hora de entregar a espada guardada há muito tempo.

Porém, no sonho de hoje, ele podia ver um pouco melhor. Uma figura pálida, indefinida, mas havia um quê de lacorês. Eram os traços de sua gente e que raramente via na cidade de Tleos. À medida em que a figura entrou por seu portão, Kyle observou os prédios do centro derretendo ao fundo. Como se fossem construções de manteiga sob o sol escaldante.

A figura subiu e Kyle sentiu-se velho, impotente e incapaz de lutar. Então, sentiu a presença forte atrás de si. Aquela força mental brutal pronta para esmagá-lo contra a parede. O rosto foi chegando pertinho e com o canto dos olhos, pôde ver aquele olhar banhado pela escuridão. 

O sinal do eclipse.

Kyle acordou num sobressalto. Estava suado. Kiorina dormia, ignorando seu sofrimento. Acordar e saber que estava tudo bem, foi um alívio. Por outro lado, aquela incerteza esmagadora o dominava.

Desde o Oráculo, sua vida havia sido confortável e previsível. Ele sabia que iria viver, por anos, feliz ao lado de sua família. Mas o que aconteceria depois de sua última visão? Ele e sua família corriam algum risco? Não saber do futuro, como em sua juventude, não era mais algo normal. Era algo assustador.

Kyle tentou afastar a sensação ruim daquele sonho. Ele recebia mensagens conflitantes. Um dos sonhos revelou que a pessoa para quem ele daria a espada, com pesar e preocupação, era um de seus filhos. Em outro, era um completo estranho e entregá-la representou uma forte sensação de alívio. No sonho da semana anterior, recebera a visita do próprio Rei-Deus, que tomou a espada de suas mãos e a transformou numa bengala de madeira.

A verdade é que fazia anos desde que Kyle sentia que aquele encontro do destino estava prestes a acontecer. A primeira vez que aquela sensação veio forte, seu filho Melgosh tinha apenas 10 anos e agora, já era um rapaz crescido. 

A visão daqueles olhos negros o fez se lembrar de Lorde Calisto. Há mais de vinte e cinco anos atrás, ele havia sido possuído por um demônio e depois disso, desapareceu. 

Seria possível que ele ainda estivesse vivo?