62 - Um dia chuvoso

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Gálius havia chegado no esconderijo antes do dia raiar e antes da chuva começar. Agora com a chuva forte, Gálius observava as gotas que entravam pelos furos do telhado ouvidos-as pingar em vários potes e vasilhas espalhadas no refúgio abandonado.

Sim! É disso que preciso! Um dia de folga para ficar com a Yté!

Mais cedo, pediu ao pai para sair no meio do treino. Deixou Kyle e Gorum esgrimindo e correu alegre para lá. No caminho, encontrou alguns feirantes corajosos que estavam montando as barracas a despeito do tempo fechado e das trovoadas. Comprou algumas frutas e uma tira longa de biscoito de jut. Acendeu uma vela no interior da cabana, comeu um pouco e deitou-se para pensar. O cansaço veio e acabou dormindo, mas acordou assustado quando veio o barulhão da chuva sobre o telhado.

Gálius ficou mexendo os pés e mãos.

Será que a Yté virá com uma chuva tão forte? Acredito que ela vai esperar até passe.

Virou-se de lado e apalpou o ferimento nas costas.

Isso coça muito! Mas a mãe me disse para não coçar. Era bom para treinar meu autocontrole.

O pior que explicar seus ferimentos para a mãe, foi explicar os hematomas no rosto e nas mãos para Lerifan. A única solução foi dizer logo a verdade. — Lutei pra valer com um mau perdedor do torneio.

Lerifan havia proibido meus treinos, mas ao menos não houve maiores consequências além do sermão.

Gálius levantou-se. Andou de um lado para o outro sentido o assoalho úmido sob os pés descalços.

Pobre Gudir. Perdeu a vida num desabamento ao cumprir aquele trabalho infame de demolição do próprio lar. O entulho acumulado na casa vizinha deslizou com a chuva. Morrer soterrado na lama! Que destino terrível! Uma tragédia que se seguia a tantas outras. Ter que acompanhar tudo isso... Não está sendo nada fácil!

O funeral fora na praça alta do gueto. As palavras atrás ásperas ainda ecoavam em sua mente.

— O que você veio fazer aqui? Seu maldito! A morte dele! Tudo isso! — o irmão de Gudir gesticulava nervosamente. — É tudo culpa sua!

Eu não consegui dizer nada...

Dois outros silfos vieram para cima de Gálius dispostos a agredi-lo, mas Kalbin os afastou.

— É melhor você ir embora, Muni.

Sentou-se arrasado e preso as aquelas memórias. Seu único alento, e quase um combustível para poder aguentar a semana, era poder se encontrar com Yté no dia de folga.

Mas que droga! Onde está você?

Gálius sentou-se sobre os calcanhares, frustrado. Olhou para a vela que acendera, mais cedo. Restava apenas um toquinho.

Já se passou tanto tempo assim?

Então a porta se abriu e Yté entrou encharcada. Tirou o manto grosso e depois outras peças de roupa até ficar nua. Ela foi para cima dele com desejo ardendo nos olhos. Sua vida também não estava fácil e para ela aquele também era um momento aguardado. Os hematomas no rosto de Gálius já estavam um pouco melhores, mas ela não pode deixar de notar as queimaduras, quando tirou a camisa dele.

— Mas o que foi isso?

— Depois eu conto, vem aqui que estou morrendo de saudades.

Então eles se entregaram um ao outro. Quando terminaram, a chama da vela já havia morrido deixando apenas uma massa de parafina sobre a banqueta. Lá fora a chuva continuava, porém, mais fraca. Gálius estava deitado de bruços e Yté, ao seu lado, acariciava suas costas.

— Ainda dói muito?

— Um pouco. Eu acho que dei sorte. Poderia ter me queimado todo se aquela pira tivesse virado em cima de mim.

— Não acha que ele vai tentar alguma nova vingança contra você, ou contra seu irmão?

— Talvez, mas penso que ele não vai querer se arriscar. Não vai querer chamar mais atenção para si e para seu negócio de lutas ilegais.

— Acredito que todo mundo sabe daquelas lutas, Gal. Algum templário deve estar sendo pago para fazer vista grossa.

— Isso se o dono daquele estabelecimento não for um templário. Ouvi dizer que pertence ao vonu Maltar. Esses desgraçados podem tudo, até mesmo torcer as leis que eles deveriam manter. Tudo isso sob o nariz do Rei-Deus.

— É. Ele continua pintando. Agora está produzindo um ou dois quadros por dia para a exposição.

— Quando isso vai ser?

— Ele ainda não revelou a data. Disse que acontecerá quando o trabalho estiver pronto.

— O que ele tem pintado, Yté?

— Coisas variadas. Paisagens, cenas de cidades, reuniões entre humanos, silfos e outros seres estranhos, navios e até mesmo demônios.

— Demônios?

— Sim, coisas assustadoras. Esses dias ele pintou um quadro com centenas deles lutando em uma cidade. Um lugar nada parecido com aqui.

— Ao menos ele parou de pintar as coisas queimando...

— É... Minha avó me contou que ele já pintou coisas do mundo exterior em uma de suas fases de pintura, quando ela ainda era jovem. E também, que algumas das pinturas que fez, representam vonus daquela época.

— Que estranho...

— Esses dias, escutei minha avó discutindo sobre as pinturas com Lomuz. Ele pensa que a exposição é para contar a história de sua vida.

— Interessante.

— E tem também... — Yté hesitou.

— Uma pintura muito estranha que ele fez de seu pai.

— Meu pai? — ele virou-se para encará-la.

— É. Seu pai, mais jovem, sentado com as pernas cruzadas e os olhos fechados em uma construção em ruínas. A paisagem de fundo mostra uma região montanhosa e alta, muito diferente daqui.

Gálius ficou em silêncio, olhando nos lindos olhos de sua amada. Então se lembrou da visão que teve, quando ficou desacordado durante a luta. Yté estava cercada de chamas e não parecia que haveria um jeito de salvá-la daquela situação. Então ele sentiu um nó na garganta e a abraçou com força.

— Eu não quero te perder! Não posso te perder.

O Coração de TleosOnde histórias criam vida. Descubra agora