Gálius havia chegado no esconderijo antes do dia raiar e antes da chuva começar. Agora com a chuva forte, Gálius observava as gotas que entravam pelos furos do telhado ouvidos-as pingar em vários potes e vasilhas espalhadas no refúgio abandonado.
Sim! É disso que preciso! Um dia de folga para ficar com a Yté!
Mais cedo, pediu ao pai para sair no meio do treino. Deixou Kyle e Gorum esgrimindo e correu alegre para lá. No caminho, encontrou alguns feirantes corajosos que estavam montando as barracas a despeito do tempo fechado e das trovoadas. Comprou algumas frutas e uma tira longa de biscoito de jut. Acendeu uma vela no interior da cabana, comeu um pouco e deitou-se para pensar. O cansaço veio e acabou dormindo, mas acordou assustado quando veio o barulhão da chuva sobre o telhado.
Gálius ficou mexendo os pés e mãos.
Será que a Yté virá com uma chuva tão forte? Acredito que ela vai esperar até passe.
Virou-se de lado e apalpou o ferimento nas costas.
Isso coça muito! Mas a mãe me disse para não coçar. Era bom para treinar meu autocontrole.
O pior que explicar seus ferimentos para a mãe, foi explicar os hematomas no rosto e nas mãos para Lerifan. A única solução foi dizer logo a verdade. — Lutei pra valer com um mau perdedor do torneio.
Lerifan havia proibido meus treinos, mas ao menos não houve maiores consequências além do sermão.
Gálius levantou-se. Andou de um lado para o outro sentido o assoalho úmido sob os pés descalços.
Pobre Gudir. Perdeu a vida num desabamento ao cumprir aquele trabalho infame de demolição do próprio lar. O entulho acumulado na casa vizinha deslizou com a chuva. Morrer soterrado na lama! Que destino terrível! Uma tragédia que se seguia a tantas outras. Ter que acompanhar tudo isso... Não está sendo nada fácil!
O funeral fora na praça alta do gueto. As palavras atrás ásperas ainda ecoavam em sua mente.
— O que você veio fazer aqui? Seu maldito! A morte dele! Tudo isso! — o irmão de Gudir gesticulava nervosamente. — É tudo culpa sua!
Eu não consegui dizer nada...
Dois outros silfos vieram para cima de Gálius dispostos a agredi-lo, mas Kalbin os afastou.
— É melhor você ir embora, Muni.
Sentou-se arrasado e preso as aquelas memórias. Seu único alento, e quase um combustível para poder aguentar a semana, era poder se encontrar com Yté no dia de folga.
Mas que droga! Onde está você?
Gálius sentou-se sobre os calcanhares, frustrado. Olhou para a vela que acendera, mais cedo. Restava apenas um toquinho.
Já se passou tanto tempo assim?
Então a porta se abriu e Yté entrou encharcada. Tirou o manto grosso e depois outras peças de roupa até ficar nua. Ela foi para cima dele com desejo ardendo nos olhos. Sua vida também não estava fácil e para ela aquele também era um momento aguardado. Os hematomas no rosto de Gálius já estavam um pouco melhores, mas ela não pode deixar de notar as queimaduras, quando tirou a camisa dele.
— Mas o que foi isso?
— Depois eu conto, vem aqui que estou morrendo de saudades.
Então eles se entregaram um ao outro. Quando terminaram, a chama da vela já havia morrido deixando apenas uma massa de parafina sobre a banqueta. Lá fora a chuva continuava, porém, mais fraca. Gálius estava deitado de bruços e Yté, ao seu lado, acariciava suas costas.
— Ainda dói muito?
— Um pouco. Eu acho que dei sorte. Poderia ter me queimado todo se aquela pira tivesse virado em cima de mim.
— Não acha que ele vai tentar alguma nova vingança contra você, ou contra seu irmão?
— Talvez, mas penso que ele não vai querer se arriscar. Não vai querer chamar mais atenção para si e para seu negócio de lutas ilegais.
— Acredito que todo mundo sabe daquelas lutas, Gal. Algum templário deve estar sendo pago para fazer vista grossa.
— Isso se o dono daquele estabelecimento não for um templário. Ouvi dizer que pertence ao vonu Maltar. Esses desgraçados podem tudo, até mesmo torcer as leis que eles deveriam manter. Tudo isso sob o nariz do Rei-Deus.
— É. Ele continua pintando. Agora está produzindo um ou dois quadros por dia para a exposição.
— Quando isso vai ser?
— Ele ainda não revelou a data. Disse que acontecerá quando o trabalho estiver pronto.
— O que ele tem pintado, Yté?
— Coisas variadas. Paisagens, cenas de cidades, reuniões entre humanos, silfos e outros seres estranhos, navios e até mesmo demônios.
— Demônios?
— Sim, coisas assustadoras. Esses dias ele pintou um quadro com centenas deles lutando em uma cidade. Um lugar nada parecido com aqui.
— Ao menos ele parou de pintar as coisas queimando...
— É... Minha avó me contou que ele já pintou coisas do mundo exterior em uma de suas fases de pintura, quando ela ainda era jovem. E também, que algumas das pinturas que fez, representam vonus daquela época.
— Que estranho...
— Esses dias, escutei minha avó discutindo sobre as pinturas com Lomuz. Ele pensa que a exposição é para contar a história de sua vida.
— Interessante.
— E tem também... — Yté hesitou.
— Uma pintura muito estranha que ele fez de seu pai.
— Meu pai? — ele virou-se para encará-la.
— É. Seu pai, mais jovem, sentado com as pernas cruzadas e os olhos fechados em uma construção em ruínas. A paisagem de fundo mostra uma região montanhosa e alta, muito diferente daqui.
Gálius ficou em silêncio, olhando nos lindos olhos de sua amada. Então se lembrou da visão que teve, quando ficou desacordado durante a luta. Yté estava cercada de chamas e não parecia que haveria um jeito de salvá-la daquela situação. Então ele sentiu um nó na garganta e a abraçou com força.
— Eu não quero te perder! Não posso te perder.
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O Coração de Tleos
FantasyAtenção, se você não leu os livros anteriores, cuidado com spoilers da sinopse. Depois dos eventos ocorridos em Herdeiros de Kamanesh, Arifa Desbrin se vê envolvida na eminente possibilidade de sua terra natal sucumbir ante o avanço dos demônios. Pa...