Gálius enxugou as lágrimas e exalou o ar dos pulmões para expurgar os maus sentimentos.
Ai, ai! Foi um dia difícil! E já não há nada que eu possa fazer.
Levantou-se e procurou a saída do gueto. Não percebeu a passagem do tempo e agora, já era praticamente noite. O fim do crepúsculo ainda coloria o horizonte com tons lilases. Não sabia ainda, mas o seu dia ainda reservava uma coisa boa e uma ruim.
Olhando para o píer mais próximo, viu uma figura arrastando os pés. A silhueta e o modo de andar...
É o Gorum?
Gálius desceu o caminho rumo ao píer, mas isso levava um tempo. Enquanto isso, a figura seguiu até o final, olhou para baixo e se inclinou na direção da água. Gálius quis acreditar estar apenas se inclinando e então gritou.
— Gorum! Gorum!
Mas seu grito chegou tarde demais. Ele o viu virando até se projetar para dentro da água. Gálius correu, desesperado até o fim do píer e saltou. Ainda havia um resto de luz, e ali, não era muito fundo. Então, conseguiu enxergar uma grande mancha escura no fundo. Nadou até lá até alcançar o irmão. Ele havia perdido os sentidos. Tentou puxá-lo, mas estava muito pesado, então percebeu haver algo preso à sua roupa. Os pulmões queriam explodir pela falta de ar, mas ele não podia deixá-lo ali por mais tempo. Encontrou pedras em seus bolsos e, com esforço, conseguiu tirar o blusão que logo afundou. Finalmente, conseguiu puxá-lo de volta à superfície.
O ar invadiu os pulmões de Gálius que já estavam queimando e ele nadou arrastando Gorum, inerte, até a plataforma que ficava abaixo do píer, onde se amarravam pequenos barcos quando a maré estava baixa. Havia muitas cracas de marisco ali e Gálius se cortou todo ao colocar o irmão para cima. O sangue descia e as feridas ardiam muito, mas Gálius ignorou aquilo ainda com esperanças de salvar o irmão. Quando criança, viu um silfo mais velho fazer isso com um de seus amigos que quase morreu afogado.
Então, pressionou o peito do irmão, várias vezes e soprou dentro de sua boca.
Ele soprava e chorava ao mesmo tempo. — Gorum! Por que você fez isso?
Quando já estava perdendo as esperanças, o irmão reagiu, vomitando água. Gorum estava ralado, sangrando e tossia muito.
— Gorum, seu imbecil! O que pensa estar fazendo! — Gálius ficou todo vermelho, quase cravando as unhas nos braços dele.
— Gal? Você também tá morto?
— Não! Eu tô vivo, seu idiota! E você também...
— Não! Era para tudo ter terminado... Mas que merda Gal! Por que você fez isso?
— Quem me deve explicações aqui é você. Para mim, papai, mamãe, nossos irmãos. Como você pensa que a Dorinha e todos os outros iam ficar quando achassem seu corpo sendo comido por caranguejos amanhã, seu idiota!
Gorum se sentou, colocou a mão na cabeça e começou a chorar.
— Você não entende... Ela me abandonou. Disse que não queria me ver, nunca mais!
— O quê? Você tentou se matar por causa daquela prostituta?
— Não fala assim, Gálius!
— Tá bom... Por causa de uma dançarina? Tanto faz! Porra Gorum! Quanta gente já não ficou de coração partido e depois ficou tudo certo... Você podia fazer como as pessoas normais fazem, ter enchido a cara, chorado, mas se jogar no mar? Se matar? Tá maluco!?
— Ela era tudo que eu tinha...
— Corta essa! Caramba! Pelo Rei-Deus! Não acredito em você.
— Merda, Gálius! Que merda! — Gorum gritou para ele, chorando — Por que você tinha que se meter na minha vida!
— Merda digo eu! Não pensou nada em sua família? Em como todos ficariam?
— A Beluna... Eu não posso viver sem ela.
— Deixa de ser criança, Gorum. É claro que você pode viver sem uma garota.
— Mas eu amo ela... Você não entende.
— Entendo sim. Eu tenho alguém.
— Você, tem alguém? — Gorum conseguir rir daquilo.
— Ninguém pode saber, porque minha garota é uma silfa.
— Tá maluco, Gálius! Isso vai dar merda...
— Quer discutir comigo quem é mais maluco? Você acabou de tentar se matar!
Gorum encolheu os ombros e começou a rir.
Gálius ficou de pé e estendeu a mão ensanguentada para o irmão — Vamos levanta.
Gorum aceitou, em silêncio. Então, viu que o irmão estava com roupa toda rasgada e embebida em sangue.
— Desculpe, eu não queria que você se machucasse por minha causa.
— Isso não foi nada. Vamos.
Gálius foi puxando o irmão escada acima.
— Você não vai contar isso pra mamãe, né?
— Não? O que você quer que eu diga?
— Não conta, por favor. Já é merda demais pra um dia só.
— Tudo bem, mas com uma condição.
— Qual?
Gálius olhou para o irmão, com lágrimas escorrendo do rosto e disse com a voz embargada — Não faça isso, nunca mais!
Gorum se emocionou e envolveu o irmão mais novo num forte abraço. Ficaram ali, alguns instantes, chorando.
Depois, voltaram a andar pelo pier, para voltar à terra firme.
— O que você vai falar com eles? — indagou Gorum, preocupado.
— Que você estava bêbado, caiu do pier e quase se afogou. E que se não fosse por mim, estaria morto.
— É perto o suficiente da verdade.
— Certo, então vamos com isso. Não estou nada ansioso para ganhar curativos para tantos cortes. Vai arder como o diabo.
— Eu preferia mil vezes isso do que a dor de perder a Beluna — disse choroso.
— Ah, fala sério, Gorum! Deixa de ser melodramático. Essa mulher te enfeitiçou, isso sim! Você ainda vai rir disso.
— Duvido... — ele disse desanimado.
— Que apostar?
Gorum ficou na dúvida.
— Será mesmo que ficar sem Beluna é o fim do mundo?
Gálius não respondeu, não precisava.
Fim do mundo... O problema todo é este! O incêndio inevitável. Será que terei condições de proteger a Yté? E minha famíla? O que irá acontecer?
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O Coração de Tleos
FantasiaAtenção, se você não leu os livros anteriores, cuidado com spoilers da sinopse. Depois dos eventos ocorridos em Herdeiros de Kamanesh, Arifa Desbrin se vê envolvida na eminente possibilidade de sua terra natal sucumbir ante o avanço dos demônios. Pa...