27 - Digna de defender o reino

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O corpo de Rencock foi recolhido pela manhã e para evitar o risco dele se tornar um morto-vivo, foi queimado perto do rio e seus restos foram atirados no mesmo.

Arifa ficou muito mal durante a cremação, mas se esforçava para não demonstrar. Além de Ralf e sua família, alguns curiosos vieram para a cerimônia e um padre da igreja de Situr, exortou a coragem dele em confrontar o espectro. Certamente um valoroso filho de Aianaron, comentou. Em seguida, encomendou a alma de Rencock aos Deuses.

Isso é mais uma das muitas ironias da vida. Sua alma ser encomendada aos velhos deuses, quando ele próprio era devoto do Deus Único do prior Yaren. Rencock se foi, assim como o cavaleiro Mirth. Ele era muito admirado em Kamanesh e meu pai gostava muito dele. Ambos se foram. Eles me passavam alguma segurança. Cada vez mais, sinto que tudo está ruindo. Que iremos todos perecer. O consolo que é Rencock não estava deixando uma família para trás... Talvez agora, ele possa encontrá-la, do outro lado.

Arifa estava tensa, rangendo os dentes.

A morte agora me faz companhia constante! Há cada vez mais de demônios e mortos-vivos! Eu quero uma morte simples! Não posso suportar a ideia de ter minha alma dominada por um demônio, ou então, ficar presa ao mundo como zumbi ou espectro, condenada a vagar e atormentar os vivos! O que poderia ser um destino pior que este?

Josselyn tocou-a no ombro e disse — Vamos, é hora de irmos.

— Onde vamos? — ela indagou com os olhos aquosos.

— Voltar para Kamemesh. Eu e Kerdon conversamos e é melhor contar o que descobrimos a nossos superiores, não creio que continuar aqui e confrontar o espectro seja uma boa ideia.

Arifa suspirou aliviada. Temia que fossem prosseguir com o trabalho de destruir, ou expulsar o espectro.

— E então, Ralf? — indagou Josselyn.

— Podemos ir assim que desejar — o grandalhão respondeu.

— Vamos pegar nossas coisas e o Kerdon no Liliu e partiremos em seguida — ela informou.

Kerdon ficara na estalagem, exausto. O cão espectral havia sugado muito de sua energia vital. Josselyn achou melhor que ele continuasse descansando e foi cuidar da cremação de Rencock, logo cedo. Tighas acompanhou a cerimônia em silêncio. Arifa não o ouviu dizer uma palavra sequer naquele dia, uma raridade completa, mas compreendia os motivos.

Finalmente, Arifa, Josselyn, Kerdon e Tighas se retiraram de Situr, no barco de Ralf, rumo a Kamanesh.

E horas depois, navegando, o silêncio permanecia sendo o pano de fundo daquela viagem. Voltar para casa tendo falhado na missão que receberam, e ainda, sem Rencock, estava sendo algo muito penoso para todos eles.

Ralf tentou animar o grupo com alguma conversa ou piada, por uma ou duas vezes, mas, o silêncio pesado logo retornava e se estabelecia. Então, o grandalhão percebeu que fora um tolo e mostrou algo que surpreendeu a todos: seu vozeirão. Ele entoou uma velha canção num tom bastante melancólico.

O barco desce o rio,

O rio cai no mar,

Saudade mostra ao homem,

Que é hora de chorar.

Kerdon e Josselyn o acompanharam na cantoria, mas Arifa, que estava sentada na proa, apenas enxugou as lágrimas que desciam num choro contido e silencioso.

Pobre Rencock!

E foi num clima melancólico que o restante da viagem se desenrolou.

***

O Coração de TleosOnde histórias criam vida. Descubra agora