93 - O prêmio

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Kyle chegou até o topo da pequena torre onde seu filho havia deixado a pequena árvore de poderes divinos. Ele subiu com a intenção de acompanhar de longe os desdobramentos do combate que acontecia na cidade, mas assim que colocou os olhos na árvore, não conseguiu mais tirar.

Tinha incríveis detalhes, e os frutos pareciam ter outro tipo de vida, como se ali dentro deles pulsasse a vida de embriões de animais não nascidos. Então, ele sentiu ser natural tirar um deles e provar. Rapidamente ficou embriagado. Sentou-se na cadeira pesada de madeira e perdeu os sentidos, com a cabeça pendendo para o lado.

Sim, ele já vira essa árvore antes. Agora se lembrava do jardim em que seu irmão depositava tanta dedicação. Kyle rapidamente esqueceu-se de si. Ele simplesmente era Gillian, filho de Tarquis e bisneto de Öfinnel Prístimos. A Cidade Branca estava sob ataque, seguindo a previsão anunciada por seu bisavô há dois ciclos.

Era um ataque massivo de demônios alados. Chegavam por toda a parte, voando. As plataformas e várias sequências de muros que protegiam a cidade eram inúteis contra aquilo. Ele estava na muralha mais baixa, seus homens atiravam flechas contra os demônios, mas eles simplesmente voavam por cima e fora do alcance.

Uma aflição tremenda tomava conta dele. O alto, onde o seu bisavô defendia a cidade, havia sido coberto pelas criaturas que envolviam a cidade branca como um enxame.

Kyle acordou ainda retendo terríveis memórias daquela batalha. Então, escutou o som de passos arrastados se sobressaindo ao som de fundo da batalha que ainda ocorria na cidade. Ele tentou se levantar, mas as pernas fraquejaram, ainda sob efeito do fruto.

— Blackwing? — veio uma voz arrastada — Será mesmo possível?

Kyle viu uma figura encapuzada claudicar e parar se encostando no marco da porta. Não era em nada reconhecível para ele. Quem seria aquela pessoa que o chamou pelo nome? O sujeito parecia um aleijado. Os lábios eram tortos e as palavras saíam dali com dificuldade.

— Eu deveria me lembrar de você? — indagou Kyle, olhando de lado para sua velha espada que ainda guardava numa bainha presa à parede.

— Não com esse corpo, mas nós nos encontramos há muitos anos. Fomos aliados até. Enfrentamos juntos o demônio Marlituk. Você e todas aquelas suas maravilhosas visões nos ajudaram, é certo. E então, não sabia que eu voltaria?

— Ainda não sei quem é.

Ele fez uma reverência desajeitada — O bom e velho Calisto, a seu dispor...

— Calisto? Mas...

— É... Uma longa história. Na última vez que nos vimos, o desgraçado do meu pai e aquele seu amigo, Vekkardi, me entregaram de bandeja para o maldito Necranxelfer possuir meu corpo. E graças ao meu corpo, o maldito demônio salvou a pele de vocês daquela horda de mortos-vivos e do infeliz do meu avô. Vou lhe poupar de uma história longa. Eu fiquei durante anos, escravizado por Necranxelfer até que meu antigo corpo foi destruído, vê, agora arranjei um corpo novo que até funciona mais ou menos.

— O que você quer comigo?

— Ora, não vim aqui por sua causa, velho companheiro...

Então Kyle olhou para a árvore e compreendeu.

— Isso não lhe pertence — Kyle olhou para a espada e fez menção de se levantar para apanhá-la, mas antes que ficasse de pé, escutou uma risada vinda de Calisto.

— Queria pegar isso aqui? — A espada voara para sua mão. Agora ele desembainhou a espada e apontou para Kyle.

— Então, meu caro, que tal carregar essa coisa aí para mim, hã?

— Eu não...

— Olha, você já não é mais aquele guerreiro de outrora. É um pai de família... Tá até um pouco gordinho, sabe? A melhor coisa que você tem a fazer é manter a sua cabeça presa ao corpo e ir cuidar deles, não concorda?

Kyle suspirou. Como pode ter sido tão estúpido? Ter baixado a guarda? Não ter ficado alerta?

Teve que fazer força para erguer o vaso.

— Ótimo! Vá na frente, por favor.

Kyle seguiu descendo as escadas e carregando o pesado vaso com a planta. Depois de um lance, teve que parar para descansar.

— Eu vou te dar uma ajudinha, pelos velhos tempos... — Calisto fez o vaso levitar com a força do pensamento. — Agora é só conduzir.

— Isso não te pertence... — Kyle voltou a dizer e Calisto espetou o gume da espada nas costas dele.

— Agora pertence sim! Ande, ande! Sabe, Blackwing o que é mais irônico?

— Quê?

— Enquanto meus aliados estão ocupados lidando com meu velho inimigo, Necranxelfer, eu estou aqui pegando o prêmio. Isso foi muito mais fácil do que imaginava.

— O que pretende fazer?

— O de sempre, obter mais poder, me vingar... Essas coisinhas da vida.

O Coração de TleosOnde histórias criam vida. Descubra agora