Como eu detesto esses dias de folga! Deveriam estar todos treinando ou melhorando as defesas da cidade!
Certas tradições, como dias de folga, não faziam muito sentido para Arifa. Afinal, ela cresceu sob a terrível noção de que o mundo acabaria a qualquer momento e que era preciso lutar, treinar, se preparar para evitar isso a todo custo. Os lacoreses se agarravam à vida que tinham, mesmo que ela muitas vezes fosse cheia de temores e sofrimentos.
Não obstante, era de fato o nono dia, o dia de folga. Em dias assim, era a tradição da família de Arifa reunir-se para almoçar juntos. Antes da coroação de Edwain, isso tudo ocorria no salão da residência dos Desbrin, no bairro das espadas, mas agora, ocorria num lugar seis vezes maior: o grande salão do castelo de Kamanesh. Não era propriamente um almoço intimista, havia convidados de modo que a grande mesa para vinte pessoas estava quase cheia.
Só mais um pouco disso e vou poder ir para o pátio treinar...
Arifa conseguiu conversar um pouco com o pai, enquanto os criados serviam aperitivos, mas era quase impossível conversar com as tias Augustine e Hilda. Elas conversavam sobre frivolidades impossíveis, poderiam esta vivendo em qualquer uma das luas, menos em Lacoresh, um reino à beira do abismo.
Arifa já se via, pela próxima hora, afundada naquilo e tentava controlar sua irritação crescente quando um dos criados chegou anunciando um visitante. Augustine, magra e elegante não reconheceu a figura do rapaz que ficou parado, logo atrás da porta entreaberta.
Por Leivisa! Tinha me esquecido disto!
— É um mensageiro? — ela indagou erguendo as sobrancelhas.
— Não irmã, é aquele coleguinha da Arifa. — disse Hilde torcendo os lábios.
— Ah, aquele rapaz... — assentiu Augustine como se falasse de um inseto, ou coisa pior.
— Papai, esqueci de avisar, convidei o Tighas para almoçar conosco. — Na verdade, ele havia enchido a paciência dela a semana inteira, pedindo para ir almoçar lá. Ela relutou o quanto pode e sabia se arrependeria de ter cedido, mas agora, não tinha mais jeito.
O duque tinha seus próprios convidados, do outro lado da mesa, estava rodeado de conselheiros da cidade. Ele não deu muita atenção à chegada do rapaz e apenas indicou ao criado que o deixasse entrar com um gesto.
Tighas entrou, com um sorriso vacilante. Sua melhor roupa estava longe de ser algo que a alta nobreza vestia. Ele se esforçou, fazendo uma vênia para todos e sentou-se ao lado de Arifa. As tias de Arifa retribuíam sorrisos azedos e fuzilavam o rapaz com os olhos. Ele era praticamente um ex-mendigo, um trombadinha e uma ameaça para Arifa. Temiam, acima de tudo, que ela pudesse se envolver com ele atrapalhando o sonho dourado de ver a sobrinha casada com o rei. Para elas, um problema maior que hordas de demônios prestes a invadir as muralhas.
Tighas encolheu os ombros ao se sentar e cochichou para Arifa.
— Suas tias têm umas caras de enguia com dor de barriga.
Arifa reprimiu a gargalhada e ficou toda vermelha. O rapaz, sem muita cerimônia foi se servindo do que havia ali e acenou para um criado para lhe trazer uma bebida.
— Eu podia me ascustumá com isso — ele sorriu para Arifa e tocou a mão dela sobre a mesa.
Sua tia Hilde quase se engasgou e Arifa entendeu logo a brincadeira.
— Ora, ora! Cês num precisam me olhar com essas caras... É só uma brincadeira, né Arifa? — Tighas olhou com malícia para Arifa — Comé que alguém como eu ia ter uma chance contra o Ed, digo, contra o Rei Edwain? Conta para elas Arifa.
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O Coração de Tleos
FantastikAtenção, se você não leu os livros anteriores, cuidado com spoilers da sinopse. Depois dos eventos ocorridos em Herdeiros de Kamanesh, Arifa Desbrin se vê envolvida na eminente possibilidade de sua terra natal sucumbir ante o avanço dos demônios. Pa...