05.2 | ou ❝amor antigo, ciúme novo❞

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Ela não era horrível. Tinha cabelos muito negros, volumosos e longos, que contrastavam de maneira agradável com sua pele clara. Os olhos eram minúsculos e tinham uma expressão curiosa. O restante de seu rosto não era marcante, mas pequeno e delicado, como o de uma boneca. Sarah não tinha muita altura, e nem era exatamente corpulenta, mas fazia uma figura aprazível de se olhar, exceto, talvez, pela cabeça – que parecia ser um pouco desproporcional ao restante do corpo, quem sabe, por toda aquela quantidade de cabelo.

Sarah Marchesini se despediu de Nicholas com um beijo suave nos lábios, e lá se foi corredor adentro, a mochila colorida pendendo às costas. Ele sorriu para si mesmo ao vê-la sair, e nossos olhos se encontraram logo em seguida. Foi o bastante para que ele fechasse a cara e sumisse da minha frente, quase como se ele não quisesse permitir que a mentirosa incendiária que eu era arruinasse sua manhã perfeita.

Era uma sensação peculiar, ver Nicholas com outra pessoa.

Ver Nicholas feliz com outra pessoa.

E, para mim, aquilo foi a gota d'água. Toda a experiência de voltar para a escola estava exigindo de mim mais do que eu era capaz de oferecer, e meus instintos básicos imploravam para que eu desse o fora dali. Olhei nervosamente para os lados e nenhuma rota de fuga me proporcionaria uma evasão despercebida da Fundação; além disso, minha advogada me mataria se eu fugisse na escola no primeiro dia de aula quando eu estava tentando convencer o juiz de meu bom comportamento.

Portanto, só me restava o banheiro feminino, a despeito do clichê adolescente que isso representa. Sem dizer nada a João e Dolores, me virei e me embrenhei banheiro adentro, procurando o último compartimento. Tirei a mochila das costas e joguei no chão, sentando-me no tampo do vaso sanitário. Ergui os dois pés para que não reconhecessem meus coturnos. Em poucos instantes, o sinal anunciaria o início das aulas e todo o corredor estaria vazio. Assim, eu poderia escapar sem ser vista.

— Vale? Valéria, qual é. — eu ouvi a voz de Dolores do lado de fora do box em que eu me encontrava — Você não está se escondendo daqueles babacas no corredor, certo?

Ela falava dos idiotas que me lançavam olhares de condenação pelo incêndio. Por um breve momento, eu mal lembrava que eles existiam.

— Não tem mais ninguém no banheiro. — eu podia ouvir seus passos de um lado para o outro no azulejo; ao perceber que eu não estava inclinada a responder coisa alguma, ela insistiu: — Você não pode ficar aqui para sempre.

— Não pra sempre. — falei, enfim, abraçando os joelhos. Eu não estava chorando, mas minha voz estava embargada e eu sabia que ela perceberia. Para me poupar da insistência da pessoa mais insistente que eu conhecia, justifiquei: — Só até o Nicholas parar de engolir a cara daquela menina no corredor.

— Oh. — ela hesitou — Eu esqueci que você não sabia sobre a Sarah.

— Ela é tipo namorada dele ou algo assim?

— Há quase um ano. — sentenciou Dolores, e eu a conhecia bem de mais para reconhecer o desprezo em sua voz, mesmo atrás de uma porta de banheiro. Eu não sabia o motivo, mas ela não gostava nem um pouco da tal Sarah.

A parte irônica daquilo tudo era Nicholas me acusando de tentar viver a minha vida a despeito de tudo o que houvera entre nós, quando ele mesmo tinha seguido em frente até bem rápido, se você quer saber. Se ele estava namorando a garota há quase um ano, o relacionamento se iniciara seis meses depois do meu desaparecimento. Eu esperava mais de alguém que dizia que me amava mais do que tudo.

Senti um aperto no coração, e me odiei por ser tão egocêntrica. O principal motivo de eu ter fugido era justamente querer para Nicholas uma vida nova, longe de todo drama do incêndio, e de todo o perigo que eu representava por ser a única pessoa que sabe como o fogo se originou, e quem originou o fogo.

— Eu não estou entendo. — continuou Dolores, agora parada diante da porta — Você não está namorando ou algo assim?

"Algo assim" certamente parecia adequado para definir o meu atual relacionamento com Lucas Avelar, que não se dignava a atender minhas ligações. Sacudi a cabeça veementemente para afastá-lo. O único jeito de aquele momento piorar era se eu tivesse um acesso de raiva, ou de lágrimas, por conta disso.

— Lucas não é meu namorado. — respondi com secura, grata pela porta de madeira que me separava de Dolores. Ela veria no meu rosto a raiva e a tristeza em relação ao sumiço de Lucas e eu teria que tecer explicações as quais eu não estava disposta.

— Então está tudo bem para ele você sentir ciúmes de outro cara e se enfiar no banheiro feito a garotinha que eu sei que você não é?

— Não é ciúme.

— Claro que é. Você não achou que viveria para ver Nicholas com outra pessoa, e agora ele está com a Sarah. Não tem como evitar sentir ciúmes.

— Não é ciúme. — reafirmei, irritadiça. Dolores colocou as mãos na cintura e me deu aquela olhada de esgoela, como quem diz "me engana que eu gosto", e eu soube que não devia tentar convencê-la.

Apesar de que eu estava sendo cem por cento sincera quando dizia que não era ciúmes o que me incomodava na relação de Nicholas e Sarah. Eu tampouco sabia exatamente o que me incomodava; talvez fosse o fato de que, na minha cabeça, até ontem Sarah Marchesini era do Ensino Fundamental e não perambulava pelos corredores do Médio. Obviamente o tempo passara e Sarah estava no primeiro ano, mas eu não conseguia deixar de enxergá-la como uma pirralha.

Ou talvez fosse a mensagem flagrada no celular de João Pedro de Stella, a irmã mais velha de Sarah. Se João estivesse mesmo tendo um caso com ela, ele escolhera muito mal e cada minuto que se passava era mais um que se aproximava de Dolores descobrir tudo, bagunça a qual eu teria que limpar, agora que estava por perto. E eu estava mesmo fora de forma em acobertar as traições de João Pedro para que Dolores não sofresse, ou segurar a barra quando ela descobria alguma besteira que ele sempre dava um jeito de fazer.

Ou talvez eu só não fosse com a cara dela mesmo.

A questão é que alguma coisa dentro de mim fazia surgir um impulso de voar no pescoço dela e tirá-la de perto do Nicholas. Não que eu tivesse algum direito sobre ele – e, mesmo que tivesse, não é como se ele olhasse na minha cara –, mas apesar de tudo Nicholas fora uma pessoa importante na minha vida. E essa importância não se esvai ou diminui por eu ter me apaixonado por outra pessoa, ou por ele não acreditar na minha inocência.

Eu fugi da cidade e me fiz de morta, só para proteger Nicholas Jordan de um segredo que o magoaria. Esse tipo de amor não some à toa.

— Por sorte, eu sei exatamente o que pode te fazer melhor. — barganhou Dolores, do outro lado da porta. Eu ainda não me sentia confortável para sair do box. Ela continuou: — Uma noite de garotas e festa no Carlinhos depois. Essa sexta. O que você acha?

— Essas festas desse mauricinho ainda existem? — perguntei, surpresa. As festas do Carlinhos eram a única atração adolescente em Viveiro, e o garoto era metido e se orgulhava muito delas. Apesar de serem todas iguais — a dizer das mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas — eu costumava me divertir muito com meus amigos nessas festas.

— São as únicas coisas que permaneceram iguais por aqui. — comentou Dolores, referindo-se à festa e à personalidade de Carlos ao mesmo tempo — O Carlinhos sempre será o Carlinhos.

E de fato, Carlos Henrique sempre seria o que sempre fora: um garoto mimado pelos pais separados, que disputavam a afeição do filho à base de grana. Na versão atualizada, ele era um garoto mimado que aparentemente me odiava por supostamente queimar o seu reino particular, a Fundação. Eu estava com um total de nenhuma vontade de vê-lo ou de ir a essa festa, mas Dolores sabia exatamente como me convencer:

— Eu até deixo você escolher o filme! Um bem sangrento, do jeito que você gosta.

E Valéria Corrêa não poderia dizer não a um filme não-romântico com sua melhor amiga. Um momento entre garotas era exatamente o que eu precisava para me distrair do fato de que eu era a pessoa mais odiada da cidade, da nova namorada do meu ex namorado e das não-ligações de Lucas Avelar.

Quem Brinca Com FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora