Capítulo 14 ou "No recreio"

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Desde que eu conheço Dolores Viana, só existe uma coisa que ela ama mais do que João Pedro Jordan, e essa coisa é um bom romance.

O que pode ser um grande tormento na existência de uma melhor amiga que não tem muita paciência para coisas melosas, já que eu passei uma boa parte da minha vida dormindo no meio de filmes tipo garoto-encontra-garota enquanto Dolores chorava agarrada a uma almofada, esperando pelo dia em que o amor verdadeiro a encontraria.

A questão é que ela ama essa baboseira romântica. Em especial, sua preferida: Dez Coisas Que Eu Odeio Em Você, uma comédia ridícula inspirada em uma obra de Shakespeare, A Megera Domada, sobre duas irmãs, Bianca e Kat, filhas de um pai meio maluco, que se mudam para uma nova escola. No primeiro dia de aula, Cameron se apaixona por Bianca, que só pode sair com garotos se sua irmã mais velha arrumar um namorado – o que é impossível, pois Kat é insuportável. Então, Cameron negocia com o único garoto que talvez consiga sair com Kat por ser tão insuportável quanto ela, e esse garoto é Patrick Verona..

O tal Patrick é super malvadão, mas ele faz de tudo para conquistar a tal Kat, e, numa dessas, enquanto Kat está em seu treino de futebol, Patrick aparece na arquibancada do ginásio de esportes e, com a ajuda da banda da escola, performa um número musical na frente de todos para conquistar a garota, e acaba na detenção por isso.

Eu já tivera minha cota de Shakespeare com a peça que Zaca me obrigara a encenar no último ano, mas Dolores era obcecada por Patrick, ou Heath Ledger, ou ambos, desde que eu me entendia por gente. Então, eu, doravante denominada Cupido, convencera João Jordan a reproduzir uma das cenas do filme na frente da escola inteira para reconquistar o amor de Dolores, tal qual Patrick fizera com Kat. E eu acreditava que meu plano tinha uma boa chance de sucesso, pois Dolores era bem mais suscetível a romances do que Kat, a Megera, era no filme.

Por óbvio, eu teria que adaptar a cena, porque uma série de elementos cruciais daquela palhaçada estavam em falta.

Primeiro, nossa escola era apenas uma Fundação e não tinha toda a estrutura dessas escolas americanas – isso quer dizer que não tínhamos uma banda. Por isso achei que seria de bom tamanho se eu convencesse Nicholas a isolar os vocais da música original e fizesse uns arranjos no computador para que João pudesse cantar. Em vez de uma banda, João convencera alguns alunos a fazer um flashmob enquanto ele cantava, e João Pedro era um cara bem popular, então, conseguimos juntas um bom número de pessoas para o grande evento.

Levamos dois meses para ensaiar toda aquela gente, e para que Nicholas tivesse tempo de cuidar da música. Era muito mais difícil sem o violão, ele dizia, porque alguma coisa nos acordes não funcionava tão bem com programas de computador e deixava o som um tanto distorcido. Eu garanti a ele que Dolores não notaria enquanto evitava pensar que, se não fosse por mim, Nicholas não teria seu violão destruído por valentões.

Também não havia na Fundação um ginásio de esportes com arquibancadas. Tínhamos apenas uma quadra poliesportiva com uns bancos para que o corpo estudantil assistisse aos jogos de futebol entre a Fundação e a Escola Municipal.

Falando em futebol, Dolores também não estava no time, e em nenhum outro time. Isso seria um empecilho ao momento do filme em que todo o time feminino de futebol para o treino para testemunhar a prova de amor/número musical, mas quanto a isso eu não podia fazer nada.

Comecei a me preocupar com a originalidade da cena quando João admitiu que era um incompetente em falar inglês, e não ia rolar que ele cantasse a mesma música que Patrick canta no filme, Can't Take My Eyes Of You. Ele escolheu, então, a música No Recreio, da Cássia Eller, porque tinha algum significado idiota para os dois. Algo sobre eles terem ficado pela primeira vez na piscina (provavelmente, na piscina de Carlinhos, que era justamente o idiota responsável por Dolores e João estarem terminados – e você tem que apreciar a ironia disso).

Quem Brinca Com FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora