Como minha audiência cautelar não aconteceria antes de quarta-feira, me achei muito mais do que no direito de não dar as caras na Fundação Haroldo Santini nos dias anteriores a esta. Isso porque eu já retornara à minha personalidade regular, a dizer, agressiva em vez de depressiva, e se alguém se atrevesse a apontar o dedo para mim com alguma gracinha típica, eu provavelmente reagiria com um soco no olho e isso me colocaria em problemas.
Minha imagem de delinquente juvenil já estava perfeitamente consolidada sem adicionar agressões físicas ao estereótipo.
Além do mais, eu ainda estava bem irritada com João – por ser um idiota – e eu não sabia muito bem em que pé eu estava com Nicholas – já que não éramos exatamente amigos, mas nós, de fato, praticamos um ritual digno dos velhos tempos no último domingo. Contudo, se não fossem as ligações simultâneas de João e Dolores, provavelmente teríamos procedido à maior troca de insultos de todos os tempos.
Ah, isso afora o fato de que Nicholas não acredita na minha inocência, o que é um inconveniente considerando que daria o depoimento mais relevante da minha audiência cautelar dentro de algumas horas.
A questão é que eu não estava empolgada para dar de cara com nenhum deles na escola. Ou na audiência. Ou em lugar algum.
Fui até o banheiro lavar o rosto e tentar parecer viva. Fiz o melhor trabalho que pude para tentar domar meus cabelos castanhos longos e emaranhados, e acabei decidindo que a melhor decisão seria prendê-los em um coque baixo. Depois, fui até meu guarda-roupa e retirei o conjunto que minha advogada dizia ser "de respeito": uma camisa de botões branca, e uma saia lápis preta. Eu me sentia uma versão delinquente de um pinguim, mas Dra. Mônica era uma boa advogada e provavelmente sabia o que estava fazendo.
Depois de vestida, contornei minha cama até onde eu guardava os meus sapatos. Eu não fazia ideia do que combinar com aquela roupa, e alguma parte da minha mente tentava me convencer de que eu devia calçar sapatilhas, mas não era essa a lógica que eu usaria. Não naquele momento. Se eu ia enfrentar uma audiência que definiria o curso da minha vida pelos próximos meses, na qual a testemunha de acusação era meu ex namorado e melhor amigo, o mínimo que eu podia fazer por mim mesma era usar um bom e velho tênis converse.
Dra. Mônica que se virasse para me fazer parecer inocente.
Meu dilema vestuário foi interrompido por uma batida à minha porta.
- Valéria, tem alguém que quer te ver. - meu pai disse em um tom de voz curioso, do qual não pude inferir nenhuma injunção a respeito de quem poderia ser o tal alguém.
- Pai, isso não é hora! - eu disse enquanto amarrava meus tênis de cano médio, sem me virar - Eu estou ocupada escolhendo os sapatos que me farão parecer menos incendiária aos olhos de um juiz no dia mais importante da minha vida.
- Acredite, essa pessoa você vai querer ver. - assegurou, e eu girei no meu próprio eixo para encontrá-lo sorrindo. Revirei os olhos.
Espichei o pescoço pela porta de vidro da varanda e notei o carro de Alan Jordan – o mesmo que me trouxera a Viveiro alguns meses atrás – na entrada de casa. Isso praticamente destruiu qualquer expectativa de ser Lucas a pessoa que viera me ver, expectativa que eu nem ao mesmo cheguei a ter. Se fosse Lucas, eu teria ouvido o ruído estrondoso de sua caminhonete assim que dobrasse a esquina.
E se fosse Lucas, eu não estaria preocupada com sapatos.
- Acho que o Alan pode esperar, pai. - retruquei mal humorada. Tinha certeza que, qualquer que fosse a mensagem motivacional que o Professor Alan tivesse a me passar, poderia ser entregue por mensagem de texto ou algo assim.
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Quem Brinca Com Fogo
Teen FictionUm ano depois do incêndio que fez com que Valéria deixasse Viveiro em busca de uma vida nova, a garota volta à cidade para sofrer as consequências de suas atitudes na tragédia. Além de ter que lidar com uma cidade inteira acreditando que ela própria...