04.1 | ou ❝tudo que vai, volta❞

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Eu não consegui falar com Lucas.

Como se já não fosse insuportável não tê-lo por perto, agora eu não conseguia alcançá-lo pelo telefone. Mandei pelo menos umas quinze mensagens antes de me sentir patética o bastante para cessar a insistência.

Talvez ele tivesse se cansado de mim e de todo o drama do incêndio. Não devia ser fácil manter um relacionamento com uma suposta criminosa, menos ainda à distância.

Distância apura todas as principais características aborrecentes de ter um suposto relacionamento com alguém. Mas isso não chegava a ser um problema para Lucas e eu até então. Ou era o que eu pensava.

Vai ver ele só tinha voltado a ter a natureza de um Avelar, da qual todos fizeram tanta questão de me alertar. Lucas decidiria que esse romance era fadado ao fracasso e procuraria uma capixaba mais adequada ao posto de não-namorada. Candidatas não estariam em falta.

Vai ver ele tinha desistido. Eu não poderia culpá-lo se o fizesse.

Porém, cá entre nós, Lucas não podia ter escolhido um momento pior para desistir de mim. Desde que Nicholas me enquadrara na porta de sua residência, eu sentia mais profundamente as consequências do meu papel no incêndio. Tive pesadelos com seu olhar gélido, e, se eu me permitisse pensar nisso por muito tempo, quase podia ouvir sua voz repleta de desprezo em minha própria mente.

E João ainda queria que eu voltasse para a escola.

Se eu mal conseguia lidar com cinco minutos de conversa com alguém que me odeia, imagine com um prédio repleto de adolescentes furiosos comigo por ter supostamente tocado fogo na preciosa Fundação deles.

Não mesmo.

Foi assim que decidi que, já que qualquer perspectiva de voltar à Fundação estava simplesmente fora de cogitação, eu passaria o dia na lanchonete ajudando meu tio Edu. Sugeri a meu pai que ele ficasse em casa e descansasse, e que eu daria conta de todo o trabalho que tivesse de ser feito, afinal, eu precisava ocupar a minha cabeça e Arthur precisava desocupar a dele.

Um pouco de trabalho braçal era exatamente o que eu estava precisando. Encher os incontáveis frascos de condimentos, colocar guardanapos nos suportes. Era a atividade perfeita pra mim, ainda mais porque tio Edu tinha várias coisas para fazer naquele dia e mal ficava por perto, me concedendo toda a paz de espírito que eu precisava para não pensar em nada.

A abertura do expediente se aproximava, e eu precisava montar as mesas. Primeiro, arrastei-as para a área coberta da lanchonete e dispus as cadeiras como meu tio costumava fazer, de acordo com o que eu me lembrava. Organizei os guardanapos e condimentos, e exatamente quando saí de dentro da cozinha para assumir meu posto no caixa, me dei conta de que eu não estava tão sozinha quanto pensara.

Parada pouco adiante de mim, estava a garota que costumava ser minha melhor amiga.

Ela estava mais magra. Mas os cabelos negros ainda eram os mesmos na altura dos ombros, o mesmo corte simétrico que usava desde que eu a conhecera quando criança. Suas sobrancelhas eram naturalmente arqueadas, mas eu sabia que aquela expressão raivosa agravava o delineado de suas linhas e lhe conferiam um olhar enfezado que não lhe fazia jus, afinal, Dolores Viana era a pessoa mais doce do mundo.

Lores vestia uma jardineira jeans e uma camiseta florida por baixo. Nos pés, botinas de camurça. Mais interiorana impossível. Eu quase sorri com esse pensamento, mas estava apavorada demais com a presença dela para conseguir destrancar o meu maxilar.

— Você voltou mesmo. — fez ela, e sua voz rouca e familiar inundou meus ouvidos, me dando uma sensação que só podia ser descrita como lar — Eu não consegui acreditar ainda.

Quem Brinca Com FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora