– Conta. Tudo. – Dolores viera me assediar durante o intervalo das aulas no final de semana seguinte, me assustando de tal forma que eu afundara o canudinho do meu achocolatado em caixinha de maneira irremediável.
Contar tudo. Não tinha o que contar. Eu assistira a uma aula de fotografia do cara, não é como se isso me desse o direito de criar grandes expectativas românticas. E não é como se eu quisesse criar expectativas românticas, embora Dolores não parecesse disposta a compreender isso.
Eu estava emocionalmente indisponível, reprimindo todo e qualquer sentimento que pudesse me acometer em função preventiva de futuras devastações sentimentais.
Mas eu não especificar a Dolores todas essas questões não me dava o direito de mentir, e no final das contas, ela estava certa. Tinha sido maravilhoso a ponto de eu dormir sorrindo ir naquela aula. Eu só dividira a experiência de fotografar com O-Avelar-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado, e não sabia como seria quando eu o fizesse com outra pessoa. Quer dizer, eu fotografara com Zaca, mas era diferente fazer aquilo com alguém que era tão apaixonado por recriar imagens quanto eu. Por ter começado a fazer isso com ele e por ele, eu considerava fotografia algo íntimo e pessoal, e isso havia sido quebrado por David.
Todas as minhas dúvidas a respeito de fotografia ser "coisa minha" ou não desvaneceram.
– Ele me parece tão familiar. – foi só o que eu consegui comentar – Não sei se é pelo modo como ele fala, sei lá, ele me faz sentir em casa. Tem também o fato de que ele não acha que eu sou culpada de nada, – Dolores ergueu as sobrancelhas, surpresa, e eu acenei a cabeça afirmativamente para demonstrar que por incrível que parecesse, eu dizia a verdade – o que é... confortável.
– Sabia que você ia ficar a fim dele. – ela disse depois de um assobio longo, se autocongratulando por me conhecer melhor do que ninguém. – Você devia convidá-lo para sair. – ela cantarolou, ignorando por completo o que eu dissera – Nesse sábado, Carlinhos vai dar outra festa.
Cuspi todo meu achocolatado tomado sem canudo. Ela não podia estar falando sério. Não podia estar sugerindo que depois de toda a perseguição que eu sofria do Carlinhos, eu teria a cara de pau de aparecer na casa dele de novo. Quer dizer, Carlos Henrique não perdia a oportunidade de me lembrar educadamente que o que acontecera com seu rosto – a cicatriz que tomava boa parte da sua face – era culpa minha. Em tempo, incitava um ódio coletivo a todos os que não precisavam de qualquer ajuda em me odiar, além de machucar pessoas com quem me importo só para me intimidar.
Para coroar, considerando que o objetivo de vida de Carlos Henrique era destruir o relacionamento de Dolores, não era nem saudável para ela dar as caras por lá. Aliás, se fossem espertos, João, Nicholas e Dolores ficariam bem longe de Carlinhos, que até agora só trouxera problemas para todos nós.
– Eu não vou convidar o David para ir na casa do Carlinhos! – falei muito mais alto que deveria, porque algumas garotas do primeiro ano agora olhavam atentamente para nós duas; eu as ignorei, e prossegui: – Aliás, sem chance de eu ir até lá, não depois de toda a perseguição que está rolando comigo na escola.
– Isso é só uma desculpa pra não chamar ele pra sair. – ela soltou uma risadinha infantil.
– Além do mais, para onde eu o levaria? – tentei argumentar enquanto limpava os respingos de leite da minha camiseta sem qualquer sucesso – Essa cidade não tem nada para fazer, por isso as pessoas vão até a casa daquele imbecil.
– Então você está interessada. – ela provocou, e eu joguei a caixinha de achocolatado já vazia nela. Pena que não respingou nem remotamente tanto quanto ela merecia..
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Quem Brinca Com Fogo
Teen FictionUm ano depois do incêndio que fez com que Valéria deixasse Viveiro em busca de uma vida nova, a garota volta à cidade para sofrer as consequências de suas atitudes na tragédia. Além de ter que lidar com uma cidade inteira acreditando que ela própria...