Só Deus sabe o perigo de um homem sem amor.
"Eu poderia deixar de ser essa pessoa ridícula que eu tenho sido, poderia pedir ajuda, mas sei lá... Eu acho que eu mereço. É isso, eu acho que eu realmente mereço tudo isso." Fiquei com as palavras dela ecoando na minha cabeça. Poderia ter envolvido ela num perigo ou não. Posso ter salvado a vida dela por algum tempo ou não. Digo, incentivado ela a viver mais, talvez. Mas fiquei com aquilo martelando na cabeça. Quanto ela ia durar num lugar daqueles?
Sua memória entrando em casa, ainda fantasiada, a maquiagem borrada de chorar de medo mesmo nada tendo acontecido ainda... Fiquei rodando e rodando isso na minha mente até cansar. Mas acordava num susto quando pensava que ela podia ter feito algo em casa. Era estranho, porque eu mesmo tinha tentado me afogar, mas quando lembrava dela, pensava que ela poderia precisar de mim. Já que realmente era verdade que praticamente ninguém se importava muito com seu estado, e as pessoas passaram a olhar pra ela de uma forma muito mais brutal e judiciosa depois do "incidente" na aula de Educação Física, me senti na obrigação de fazê-la ficar viva. Irônico, eu sei.
Ainda bem que eu não tinha bebido... nem usado nada. Cheguei em casa sóbrio e de boa. Dormi sem um pingo de inconsciência própria. Eu tinha aula no dia seguinte e não podia dar bobeira.
Aí, eu acordei. 6h15. Cedo demais. Podia voltar a dormir, mas estava incomodado. E se ela fez algo? Não, ela não enviou mensagem nem nada. Pensamento positivo: ela pegou seu cartão que o garoto do cemitério me deu e que eu dei pra ela ontem, pode ter entrado lá no chat deles... Mas aquele trabalho...
Suando frio, apenas me vesti e saí correndo de casa. Mamãe sequer estava acordada. Caminhei a passos largos até sua casa, inspirando o medo a cada piso no chão. Era quase sufocante, não no pescoço, mas no coração. Porta de casa fechada. Quem seria o idiota de bater na porta de alguém às 6h30 da manhã incomodando os outros numa segunda-feira? Poderia ser alguém pedindo dinheiro, poderia ser um ladrão, poderia ser algum viciado... Não acho que eles vão abrir.
Eles. Droga. Posso acabar dando de cara com os pais dela.
— Sim? Em que posso ajudar? — uma mulher de estatura média atendeu a porta, cabelos pretos, meio envelhecidos.
— É que... eu vim buscar a Gele, digo, a Léa. A gente tem um... trabalho pra fazer, e tínhamos que chegar ce...
— Pode entrar. Boa sorte tentando acordar ela. — a mulher bocejou e entrou em casa, indo em direção à cozinha.
Era curioso como facilmente entrei na casa dela. Digo agora. Agora eu tinha obstáculos. Eu já havia estado ali antes sem o menor problema. Mas era só eu e ela. E agora, estava prestes a entrar no quarto dela. Sem ninguém vigiando. Talvez mais estranho que curioso. Mas por que "boa sorte"?
Não conhecia a família da Geléia ainda. Sabia que ela tinha pai e mãe. Sabia que eles davam e confiavam liberdade à ela de uma forma inacreditável e, por isso, nem imaginavam que ela trabalhasse numa boate como... Talvez sim, sei lá. Nenhum pai é totalmente omisso da vida do filho. Eu acho. Sei que me deixaram à vontade, mas e se ela estivesse... nua, sei lá. Ou só de camisola. Eles não ligavam?
Então quer dizer que a mãe da Geléia já sabia que ela voltou pra casa? Que pergunta, né, Branqu... digo, Marcelo. Pablo, eu te odeio.
Caminhei aos poucos, deixando a casa perceber que havia alguém ali. Não como um ladrão, como uma visita. A mãe dela voltou pra cama. E engraçado, ela não estava de roupa de dormir. Não deu pra ver o pai, mas com certeza acordaria daqui a pouco. Não estava tão perdido assim. Lembrei do dia em que fui "estudar" junto com ela de novo... E dela cortada no banheiro. Seu quarto ficava na parte de cima, era o que eu sabia. Meu coração bateu um pouco mais forte. Ela podia estar deitada no chão, sem vida. Podia estar cortada, de novo. Respirei fundo e bati na porta. Nem sinal. Bati mais uma vez e ouvi um grunhido. Ufa.
— Geléia, eu vou entrar.
Ela não reclamou. Abri a porta e a vi atirada no chão. Deitada de lado, com uma grande diferença... Os cortes não foram nos braços. Nem na pele. Ela cortou o cabelo. Estava curto, muito acima dos ombros. Ela estava acordada. Olhando para o nada. Respirava fundo algumas vezes. Não estava chorando. O celular de lado, bateria baixa. Me aproximei dela aos poucos.
— O que foi? O que você fez?
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Rascunhos
Teen FictionUm reencontro de velhos amigos, uma noite, um suicídio e uma pergunta: por que ele fez isso? E por que o que ele fez está mexendo comigo? Marcelo precisa lutar contra os pensamentos autodestrutivos não apenas seus, mas os de muita gente ao redor.