PT 2 | Capítulo 25 | Paraíso

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Não demorou muitas horas, antes de 12h, eu comecei a ficar com fome. Mas não, achei melhor ficar na minha. Podia ter gente me procurando no meio da rua. Podiam me reconhecer. E aí, ia começar tudo de novo. E realmente, tinha. Ouvia pessoas subindo e descendo das escadarias comentando do vídeo de um cara que se jogou "daquele viaduto ali mais cedo". E não tinha coragem de sair do escuro.

Devia ser depois de 12h, quando ouvi pessoas descendo as escadas e falando meu nome. Me lembrei que o casaco tinha um capuz. Coloquei e o escondi o máximo que eu pude. Não dava pra ficar ali porque estavam pedindo informações pra várias pessoas na rua. A voz da Geléia e do pai dela. Eu queria sair, e não sabia como. Me fingi de drogado. Qualquer coisa na mão, cheirando. O suficiente pra esconder meu rosto. Tirei os óculos. Escondi meu rosto na parede. Ela tinha que ter medo de mim. Eu era o monstro, lembra?

Eu percebi que ela tinha me visto, só não me reconheceu. E antes que ela avançasse pra me perguntar qualquer coisa, o pai dela a segurou. Cuidado com essa gente, garota. Ele tem razão.

Eu não trouxe o celular comigo. Deixei na casa dela. Então nem adiantava me ligar. Eu me tornei incomunicável. Mas por incrível que pareça, ela estava insistindo em se comunicar comigo. Sei disso porque, de longe, ouvi ela gravando um áudio pra mim falando meu nome. Mas ela foi se afastando com o pai e eu não pude ouvir tudo o que ela tinha pra dizer. Mas ela parecia triste. Ela realmente esperava que eu respondesse. Que eu voltasse do espaço sideral pra um ambiente seguro.

O que ela faria em meu lugar? Porque por muito tempo, ela mesma preferiu esconder os próprios problemas, viveu uma vida dupla e cheia de perigos e lidou com os próprios problemas de uma forma... De uma forma que eu mesmo tive que obrigá-la a colocar tudo o que ela tinha dentro de si e se livrar daquela vida. Ela ia morrer... Sem se abrir. Sem ter a oportunidade de se comunicar.

Mas sempre que eu tentava falar sobre o que estava dentro de mim, era quase impossível. Até quando eu realmente quis falar, gritar... Não saía. Não saiu com a Geléia lá em casa. Então onde eu ia conseguir colocar pra fora?

Como eu ia entrar no chat do SOS àquela altura do campeonato? Não tinha um computador nem um celular. Não tinha um julgamento com estudantes traumatizados onde os voluntários pudessem me dar um abraço. E o cara do cemitério não parecia estar por perto.

Mas eu desperdicei a oportunidade. E não sabia quando ela viria de novo. Mas a vontade veio de gritar de novo. Eu só precisava da hora, do lugar, da pessoa pra ouvir. Me cansei de ficar debaixo daquelas escadarias e de todo aquele cheiro. Me deixei guiar por um momento por duas meninas que passaram escadaria abaixo com um pote enorme cheirando a salsicha de cachorro quente com muito molho. Já estava sentindo a fraqueza bater. Deixei elas indo na frente, e pensei que talvez, se fosse atrás delas, elas me dessem algo pra comer. Ainda não me sentia digno de voltar em casa pra fazer qualquer coisa. Estava decepcionando pessoas demais num dia só.

Acompanhando o cheiro, mais do que as meninas, eu segui um novo caminho longe daquele lugar. Já estava caminhando em tropeções. E elas nem perceberam que eu estava logo atrás. Elas podiam suspeitar que eu fosse um estuprador ou algo do tipo. E tinham razão em pensar isso. Mas o raciocínio começou a ficar confuso. E no meio desse caminho, eu... apaguei.

Pra ver luzes fortes em cima de mim. Eu não fazia ideia de onde estava, que horas eram, o que houve. E isso me deixou em pânico. E se alguém conhecido me encontrou? E se alguém fez algo comigo?

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora