PT 2 | Capítulo 2 | Bem a-cor-da-do

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Eu apenas olhei para ela, virando em seguida a cabeça para a tia Katia. Coitada, não disse mais nada. Só olhou pra baixo e sorriu. Não percebi a situação. Voltei para comida. Mamãe botou o PP pra dormir por alguns momentos. E lá vem o comentário:

— Você nunca vai chegar a lugar nenhum na vida desse jeito, Marcelo. Fechado, emburrado, não fala com ninguém quando está todo mundo junto. Daqui a pouco, você morre e ninguém sabe! Parece até que nunca tem ninguém do seu lado!

— Calma! Sem necessidade você falar assim com ele – tia Katia quase sussurrou, fazendo um gesto com as mãos.

— Calma? Não venha você me ensinar a cuidar do meu filho. — disse ela, virando-se diretamente para mim em seguida. — Daqui a pouco você desaparece igual a Pamela...

PAUSA.

Isso talvez tenha sido o suficiente para, finalmente, unir todo mundo.

Mamãe falava alto. Reclamava bastante. Sempre foi assim. E não media muito as palavras para conversar com as pessoas. Só faltava arrancar um cepo de madeira para tacar em alguém. Mas olha que proeza: ela conseguiu fazer todo mundo parar o que estava fazendo para conversar sobre alguma coisa. Em voz, ao vivo e a cores. Grande mamãe. Que orgulho.

Mas quem é Pamela, afinal? Mamãe falou em desaparecer, coisa que eu já tinha pensado antes, mas não com muito fervor. Sempre queremos desaparecer quando parece impossível resolver um problema. E já que eu nunca ia chegar a lugar nenhum na vida, seria uma ótima ideia desaparecer. Bem antes do... Até quem chegou a um determinado lugar resolveu desaparecer. Por que eu não posso? Não acha?

Se eu fizesse igual a Pamela, talvez minha mãe começasse a falar baixo e dócil como minha tia Katia. Pamela era filha da tia Katia, minha prima mais velha. No dia de seu aniversário de 17 anos, ela pediu uma viagem de aniversário, mas ninguém poderia saber pra onde ela iria. Sequer pediu dinheiro. Futuro brilhante pela frente, com 18 estaria nos Estados Unidos tendo aulas com Harrison Ford. Levou apenas uma mochila e sumiu. Menina brilhante, quem sabe não iria ao Japão assistir uma aula extraordinária de desenho artístico e cinema? Ela jamais desperdiçaria a vida com coisas banais como drogas ou gravidez precoce. Não, ela não. Será que não?

Pamela desapareceu em dose dupla: primeiramente, do mapa e, consequentemente, do mundo. Uma viagem que levaria um fim de semana levou uma semana para ser completada. Gostaria de informá-lo que o corpo de Pamela Morato Nunes foi encontrado numa floresta em Manaus. Morte por enforcamento. Razão do óbito: aparente suicídio. Pelo menos, era o que constava na carta de despedida que deixou no bolso de sua calça, pendurada do lado de fora com um durex, para que tivessem certeza que ninguém tinha culpa nenhuma do que ela estava fazendo.

Mas não pareceu que ninguém tinha culpa. Ainda não parece. Tia Katia reconheceu que, por algum tempo de sua vida, pareceu ter sido dura demais com a Pamela. Mas por que chorar pelo leite derramado? Era tarde demais para evitar a tragédia. O bom lado da história é que a consciência sempre pode dar uma oportunidade a nós de mudar. E foi exatamente o que aconteceu. Fala mansa, conversas profundas, grupos de apoio... E se não foi possível salvar a filha mais velha, a mais nova ainda poderia ter um futuro feliz e promissor, muito mais emocionalmente do que profissionalmente.

Será que uma parte do mundo ao meu redor vai mudar se eu também sumir?

Talvez se eu saísse da rotina e tomasse uma atitude diferente da que eu tenho tomado no meu dia-a-dia, como minha própria mãe disse, quem sabe não apenas a minha condição mudaria. E se eu fizer o que a Pamela fez, bom... Nada melhor do que um tempo difícil para nos fazer repensar nossos conceitos. Talvez todo mundo precisasse se sentir um pouco sozinho pra, justamente, não sentir que está sozinho no meio deste sentimento.

E lá estávamos, na mesa de jantar, eu e tia Katia nos sentindo totalmente sozinhos. Sim, parecia algo tão ridículo para se discutir, tão bobo, mas... Quem tinha enfrentado aquela situação antes? Quem perdera um filho daquele jeito em toda a história da família?

Agora, éramos nós contra a casa toda, exceto pelas crianças.

— Você tinha que tocar nesse assunto, mulher? — gritou o Borges, largando o celular da mão.

— Falo pro bem dele. Se esse exemplo não serviu até agora, é melhor começar a servir.

Sim, sem dúvida o exemplo da Pamela era inspirador. Nunca senti tanta vontade de morrer, principalmente naquele momento. Mas ela teve alguma coragem, ao menos. Eu não tinha.

Normalmente eu vestia uma capa de invisibilidade diante das pessoas. E sempre funcionou muito bem para esconder toda aquela sensação de solidão. Ninguém notava antes, então, por que gritar por ajuda?

Minha mãe foi a minha grande heroína naquela noite. Ela conseguiu, finalmente, fazer com que o mundo notasse a condição na qual eu estava chegando. Condição esta que nem ela conseguiu enxergar antes. Foi necessário um comentário doloroso que machucasse uma pessoa para que outra tivesse a chance de ser "curada". Curada dos comentários ofensivos diários na escola e na internet, daqueles que se unem em prol de um objetivo único, como uma verdadeira família, para tornar a minha mente num verdadeiro inferno. Curada daqueles momentos em que todo mundo tem algo melhor pra fazer do que sentar para ouvir dramas.

Coisa melhor pra fazer do tipo "ficar sozinho".

Será que eu perdi a razão? Eu não sou um garoto problemático. Talvez a coisa mais grave que aconteceu comigo, e eu nem sei se aconteceu (aquela esperança natural de saber que as coisas vão se encaixar nos seus devidos lugares um dia), foi não ter conhecido meu pai e minha mãe nunca falar nele. E claro, perder o... Não é comigo. Não sou eu que saio antes do dia raiar e só volto na virada do outro dia a cada "feira" da semana.

Não era melhor as pessoas continuarem sozinhas em seus mundos virtuais?

Perdi a fome. Foi melhor subir, espairecer, me sentir sozinho de outra forma melhor, seguir os bons exemplos lá de baixo. Peguei o celular que estava carregando no andar de cima. Num quarto ali do lado, as crianças brincavam de boneca. Talvez as únicas não-afetadas pela crise do século 21. Brinquedos ainda eram melhores que um aparelho. Entre as fotos do Instagram de pessoas lindas, felizes, bem-sucedidas e cheias de frases moralistas para divulgar e conseguir seguidores e curtidas, risadas altas disputavam minha atenção. 

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora