PT 3 | Capítulo 14 | O maior vilão sou eu

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Seu olhar, na verdade, parecia dizer: "você realmente não é digna de ser minha filha, nem parece gente", porque ela não parava de encarar as madeixas baixas da filha. Tentava focar nos olhos, mas sua atenção estava no cabelo. Balançou a cabeça em sinal de reprovação, mas segurou as reclamações. Com a minha mãe é diferente. Se ela tiver que me detonar, o faz na frente de todo mundo.

E comecei a pensar. "A culpa é toda minha", ela disse. Geléia não aguentava um 2.7 em Geografia. Suas notas sempre foram altas. Será que ela realmente gostava de se garantir na melhor posição, fazendo sempre o melhor? Talvez porquê ela fosse boa em equilibrar a vida dupla. Por que ela não se achava no direito de errar?

Vi ela respirar fundo e deixar escapar uma lágrima.

— Trabalho pra acabar, só isso.

— E por que não acabou antes? Não teve tempo?

— Por que não... — ela já tinha terminado a resposta, quando decidi completar. Acho que estava entendendo.

— ...pudemos antes. Estávamos fazendo outro trabalho, e praticando pras Olimpíadas. É só pra consertar um negócio, e não é nem pra aula de agora. Né?

Acenei com a cabeça, pedindo para que concordasse comigo. Balançamos as cabeças como aqueles cachorros de enfeite de carro.

— ...seja mais responsável da próxima vez. — sua mãe virou as costas e foi embora, corredor adentro até seu quarto.

Geléia olhou para baixo e saiu porta afora, limpando o choro. Caminhou com pressa até sua bicicleta, que eu não consegui notar na noite anterior que estava largada ali perto, mas a sua impaciência era tanta que a correia da bike soltou. Se apoiou em uma das marchas, ainda olhando pra baixo.

— Vamos andando — coloquei a mão no ombro dela. — Eu não comi nada quando saí de casa também.

— Tá bom — ela disse, numa fala sufocada, respirando fundo e fungando.

Ela deixou a mochila de um lado só e fomos, lado a lado, andando até uma lanchonete em frente à escola. Senti seu olhar, quase se autocondenando.

— Eu estou horrível, não estou? — perguntou, olhando para baixo enquanto caminhava.

Na verdade, não. Parecia a Lena, e ela era linda demais.

— É claro que não. Ser você é o seu melhor look.

Ela sorriu, ainda olhando pro chão. Mas durante toda a caminhada, as preocupações eram inúmeras.

Foi um fim de semana muito punk. E se eu me considerava um "herói" por, mais uma vez, poupar a Geléia de um destino "cruel", a resposta era não. Porque se uma Geléia saía de uma vida vazia como aquela, outras 10 entravam escancarando o portão. E nem era exatamente da mesma forma que ela. Digo isso porque... além do nosso desafio, fizeram um outro no fim de semana. Foi insignificante. Mas... Lena, Sabrina e outras três meninas do segundo ano foram a um baile funk. E a aposta era conseguirem comprar, pelo menos, 20g de qualquer droga que estivesse circulando lá. Dito e feito. Só não usaram. Pelo menos, não que tenham falado. Não que tenha sido visto.

Mas a gente sabe que elas não usaram porque, quando chegamos no restaurante em frente à escola, uma movimentação grande se fez em volta das meninas. E eles ficavam jogando os saquinhos com a droga pro alto enquanto as meninas pediam pra pararem porque alguém podia pegar e suspendê-las. Aí o Pablo chegou, pegou tudo das mãos delas, arrastou a Sabrina pra dentro da escola e o resto das meninas ficou comentando da "experiência no morro". Tão suicidas quando eu e a Geléia, só elas. E qual o problema com a Lena? Ela era zen. Totalmente tranquila. Imprevisível... Mas...

Depois, isso "serviria" pra algo na festa. Na nossa.

Por via das dúvidas, eu resolvi separar um tempo para ouvir a Geléia mais um pouco. Mesmo que isso significasse matar aula. Mas o que ainda me incomodava era o fato de os pais dela talvez não saberem por quanta coisa a filha estava passando.

A minha mãe também não sabia do que estava na cabeça. Mas eu fazia lá meus esforços pra não guardar absolutamente tudo. Não nos últimos tempos, claro. Mas quando dava... Como quando a carta do "Charles" chegou pra mim. Ela sabia que eu estava quebrado. Eu não tive vergonha de assumir. E por mais que as palavras e atitudes dela às vezes me dessem nos nervos... Ela era um ser humano. Uma pessoa, lembra? Fazia lá o esforço dela pra me consolar. Eu não podia acreditar que os pais dela fossem 100% ignorantes quanto a tudo que ela estava vivendo. Se eles não foram com a irmã...

Então depois de comprar dois salgados e dois sucos, eu fingi que estava digitando uma mensagem de texto pra alguém da escola. Ela ficou olhando pro salgado como se ainda tivesse coisas pra vomitar. Era hora. Lembrei que tinha o contato do pai dela. Ele devia ser trabalhador. Já devia estar acordando pra trabalhar. Não sei. Mas vou arriscar. Disquei seu número. Esperei.

— Tá olhando o quê aí? — ela levantou a cabeça para tentar espiar.

— Eu que te pergunto. Não quer comer não? Eu como — falei, pegando o salgado do prato dela e sendo impedido automaticamente.

Chamando. Chamando. Chamando. 0:01.

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora