PT 2 | Capítulo 23 | Monstro

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Quando eu percebi, não conseguia parar de falar. Não me lembro muito bem das minhas palavras, mas me sentaram na cadeira e olharam nos meus olhos. Não me lembro bem de quem. Parecia que eu tinha ficado cego por um momento e tinha começado a dar golpes no ar. Então eu ia partir pra cima da Sabrina, é isso? Finalmente eu ia sentir pena de mim mesmo e fazer algo a respeito do que ela fez comigo? É, Pablo, você ia gostar de estar aqui e ver isso.

O responsável por tudo aquilo não estava no recinto. O responsável pelas minhas noites mal-dormidas, pela minha falta de vontade de viver. Mas ele tinha que estar ali. E eu ia fazer o coelho sair da toca e virar meu assado pro jantar.

Não consegui ouvir as horas seguintes de conversa. Provavelmente o Rogério ia ter um desenrolar feliz e voltaria a enxergar. Mas eu realmente não prestei atenção. Fiquei me perguntando qual o melhor tipo de câmera para conseguir capturar o que o Marcus ia fazer comigo, calculando ângulos, perguntando a mim mesmo quanto seria necessário. Quando ele me dopasse, o resto era história que a polícia ia investigar. Escrevendo meus planos mentais eu não conseguia mais responder ninguém. Mesmo ouvindo da diretora e da minha mãe, aquele não era mais meu mundo. Não meu corpo, não minha vida. E, ainda, assim, eu via a necessidade de vê-la a salvo de uma vez por todas. Ou pelo menos o meu desejo era só o de, pela primeira vez, fazer o mal pelo bem. Talvez fosse isso mesmo. Só não tinha coragem de me chamar de justiceiro.

Com uma fé quase inabalável, voltei pra casa surtando com a resposta do meu tio.

Calma cara

Sexta-feira que vem eu tô de volta no Rio e dou uma passada aí

Não faz besteira pfv

Segura a onda

Então ele realmente ia vir. Deixei os trabalhos de casa e tudo o mais passarem de vista. Eu precisava muito, muito, muito... destruir aquele verme. Ia e voltava da escola passando na banca do jornal. Adolescente de 12 anos estuprada e morta pelo vizinho. Vaza vídeo em que padrasto tenta abusar da enteada. QUANDO ISSO VAI PARAR? Grupo de malandros grava vídeo ao vivo estuprando menino de 9 anos. E isso me esquentava o sangue. Virava minha motivação diária para seguir em frente com a minha justiça. Até no fim de semana eu saía de casa só para olhar o jornal. É uma pena que nenhum outro abusador tenha cruzado o meu caminho esses dias.

Então me lembrei da Bruna e de nossa aula sobre escolhas. E a minha acabou sendo feita totalmente o oposto daquilo que eu pensava que faria durante toda a minha vida. Eu escolhi a arma, sim. E os dias se arrastavam como nunca. Eu não estava conseguindo dormir. E quando pensava que o sono duraria pelo menos uma hora, o golpe da queda no chão, do tiro na cabeça, dos espelhos quebrados decidia me despertar e me fazer refletir mais um pouco.

Para não dizerem que eu estava sendo negligente, e porque contar meu plano pra Geléia ia parecer coisa de maluco, resolvi, finalmente, entrar no chat do Farol numa terça-feira à noite, três dias antes do meu tio chegar. Passava do horário das 0h e eu estava sem sono depois de olhar várias vezes aquele quarto imundo procurando pontos em que ele não identificaria a câmera que eu queria usar. Mamãe não estava em casa. Eu precisava colocar pra fora um pouco daquela... coisa toda. Só um pouco. Era quase como as bactérias do meu corpo. No fundo, eu precisava da maioria. Eu ainda precisava daquilo pra ter coragem e prosseguir com meu plano.

Só queria que alguém soubesse que estou disposto a lutar por uma causa, já que eu estava me sentindo sem amigos e sem opções de pessoas para contar dos meus pensamentos sem receber julgamentos. Eu sei que a Geléia não ia me julgar... mas esse meu lado nem eu mesmo conhecia e sei que posso espantá-la de vez da minha vida se ela puder ouvir cada coisa que estou pensando. É a primeira vez que passo a ouvir mais de uma voz na minha cabeça, sugestões diferentes, às vezes distorcidas, outras destrutivas, mas sempre tem uma carga negativa constante. E ao mesmo tempo em que me sinto sozinho, me sinto cercado de opiniões, palavras e discursos quase inacreditáveis pra mim mesmo. Aquilo era a minha mente? Pedindo pra preparar uma armadilha extra pro Marcus, fazendo eu imaginar o que sou capaz de fazer com uma faca de pão, me fazendo enxergar outras pessoas atrás de mim? Eu me sentia um monstro aos poucos, mas aquilo não parecia me incomodar tanto.

Entrei no site e aguardei o atendente desconhecido. Preferi não me identificar. Me colocaram automaticamente como "Visitante". Menos mal. Digitei um simples "oi" e fiquei na espera.

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