De repente, os alunos vieram atrás também. Ficaram a uma boa distância do professor. O murmurinho continuava.
Ela não parava de chorar. O professor olhou pra trás.
— VOLTEM PRA DENTRO AGORA OU EU VOU DESCONTAR UM PONTO DA MÉDIA DE TODO MUNDO!
Todos saíram, um por um. Seus soluços eram audíveis. Ela tentava se conter, mas sem sucesso.
Ele tentou chegar perto dela.
— NÃO! PARA, POR favor... — ela foi diminuindo o tom de voz.
— Eu só quero saber se ainda está doendo — ele tentava, mas ela só se afastava. — porque, assim, eu posso te liberar pra ir pra casa, ou te levo na enfermaria...
— E quem é que vai curar o que você fez? — ela mal conseguia olhar nos olhos dele. Puxava as mangas para baixo como se tentasse cobrir alguma nudez.
— Mas... afinal, por que... por que você faz isso? É você quem faz isso?
Vitor veio correndo até nós.
— Ela quer ficar sozinha.
— Não dá, cara, ela se machucou — indaguei, olhando pros braços dele. Tinha certeza que ele fazia o mesmo.
— Ela já passa por isso há muito tempo — ele se aproximou dela, abraçando-a devagar.
Olhei pro professor, e ele pra mim.
— Olha... Precisamos levar ela pra enfermaria. Pelo menos pra passar um... Gelol, pra aliviar um pouco. A dor muscular, essas... podem inflamar — o professor disse, apontando para os braços dela.
Ela continuava soluçando.
— Eu levo — falei. — Vamos?
Ela olhou para mim, ainda soluçando. Ela parou de puxar as mangas.
— Finge que machucou o quadril e a perna. Pula nas minhas costas.
Abaixei um pouco para que ela subisse nas minhas costas. Levantei ela, e seguimos caminho até a enfermaria pelos corredores vazios. Os alunos das outras turmas estavam em suas respectivas aulas. Vi um sair da aula para o banheiro, olhando pra nós dois. Não suspeitou de nada e seguiu caminho.
Abri a porta, com ela ainda segurando meu pescoço. Ela fingiu mancar um pouco, e a enfermeira a colocou em cima da maca. Cruzei os braços. Pela janela, dava pra ver Vitor à espreita. Se sentou na parede, olhando para o lado direito toda hora, ainda mexendo os lábios.
Geléia parou de chorar aos poucos. Levantou um pouco a perna da calça legging que usava, simulando sentir dor quando a enfermeira encostava. E na maior gentileza, perguntou:
— Dói em mais algum lugar?
Ela estava com muito medo do julgamento que poderia receber. Estávamos todos sozinhos e a enfermeira não seria uma imatura e burra pra sair contando pra escola toda do que houve:
— Ela fez uma manchete ruim. O braço... acabou afetado.
Geléia olhou pra mim com medo. Tentou desviar o braço, e a enfermeira o parou, pedindo calma. Cruzei os braços, quase sentindo sua dor. Respirei fundo. Alguns cortes pareciam recentes, em carne viva.
A enfermeira não apresentou reação alguma no semblante. E acrescentou:
— Ah, querida, não se preocupe. Já vi muita coisa pior aqui, acredite — e pegou um gel. — Meninas grávidas, pra você ter uma ideia. Uma que estava dopada. Outra que tomou quase 15 pílulas de laxante — Geléia riu. — E eu não te julgo. Minha filha também costumava fazer isso. Eu entendo perfeitamente. Você não está sozinha.
Lembrei do cara no cemitério com os cartões. Era pra aqueles momentos que aquela frase servia? Ela balançou a cabeça e recebeu um abraço da enfermeira, que passou o gel em seu braço e o deixou imóvel por alguns minutos até enfaixá-lo. Um ficou mais enfaixado que o outro. Ela passou um tipo de creme de massagem também para seus braços, que deixou um cheirinho de erva doce e hortelã na sala. Toda hora, Geléia cheirava pra sentir o aroma.
— Vai ficar brisada desse jeito — e ela fechou a cara pra mim.
A enfermeira nos deixou sozinhos, mas garantiu que não contaria a ninguém aquele segredo. Disse que poderíamos ficar o tempo que quiséssemos ali, desde que concordássemos em fechar a enfermaria às 18h.
Engoli em seco. Não me lembrava de ter visto aquilo em minha vida. Não dói? Porque deve ser horrível ver sangue saindo de você. Eu odeio fazer exame de sangue, sempre me dá tontura. E perto dos pulsos? Ela não podia morrer se atingisse uma artéria? Não deixava ela fraca ter menos sangue no corpo? Sangrava muito? Quanto tempo até parar de sangrar? Há quanto ela fazia aquilo? Será que ela já teve algum sangramento muito grande? Alguém sabe disso?
Tudo o que conseguiu sair da minha boca foi:
— Por que você se corta?
Ela estava olhando pra baixo, reservada, até olhar nos meus olhos, o rosto inchado de chorar:
— Porque eu não tenho coragem suficiente pra me matar — ela fungou. — Não tinha... até hoje.
Não sabia se a abraçava. Se ela preferia ficar assim, distante. Pensei que eu poderia feri-la de alguma maneira. Mais do que ela já estava ferida... Não sei se era possível. Um abraço não mata ninguém.
Me aproximei, ainda com medo de qualquer reação negativa. Ela encostou a cabeça no meu peito, e voltou a chorar. Olhei em direção à porta.
Ele ainda estava ali. Falando.
E ao mesmo tempo que me perguntava se eles tinham algo em comum.
Se lidavam com os problemas do mesmo jeito.
Eu ainda não sabia lidar com os meus. Tomei um susto com o jeito da Geléia. Talvez seja o jeito do Vitor. Mas por que um susto, afinal? Ela falou com tanta naturalidade de sua morte.
Mas e eu?
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Rascunhos
Novela JuvenilUm reencontro de velhos amigos, uma noite, um suicídio e uma pergunta: por que ele fez isso? E por que o que ele fez está mexendo comigo? Marcelo precisa lutar contra os pensamentos autodestrutivos não apenas seus, mas os de muita gente ao redor.