Hoje será o dia em que eles vão jogar tudo de volta em você.
Trilha sonora do capítulo:
6h25 da manhã. Acabei dormindo com os óculos. Mas o primeiro pensamento do dia foi assombroso. "Verificar se ela estava viva".
Infelizmente, isso me lembrou do dia em que os dois tiques azuis mudaram de significado. Ela poderia não estar do outro lado de verdade. O que me fez ficar ansioso.
Pulei da cama atrás do meu celular. Olhei por todo lado. O desespero me fez perder a atenção das coisas. Eu precisava retribuir. Ela salvou minha vida... ou não. A arma não era de verdade. Mas ele poderia ter me enchido de pancada e levado minha tia... Não quero nem pensar nisso.
Na falta do celular, liguei o computador na velocidade da luz. 6h30. 5 minutos em que ela poderia aproveitar. Se a cada 40 segundos uma pessoa se mata... Mais de 10 oportunidades pra ela. Muito mais, durante uma madrugada toda separados.
Messenger.
Antes de digitar... lá estava ele.
Chama uma vez. Duas.
- Tarde demais, Branquelo. Tô a caminho da escola. Não esquece da aula de Educação Física.
Por alívio, dei um sorriso e desliguei o telefone.
Era contraditório pensar em alguém assim. Que parecia sério e, ao mesmo tempo, ainda brincava. Tantas vezes olhavam para ela como o tipo de pessoa sem graça, como se o fogo de seu coração estivesse apagado... E do mesmo modo como eu a apelidava, ela também me reconhecia da mesma forma que a escola inteira. Já tinha me acostumado. Talvez ela também.
Mas do que ela fazia questão pra fazer uma ameaça daquelas?
Talvez não fosse uma ameaça, apenas a conformidade. Tudo tem um fim. O mundo de alguém acaba todo dia. É, talvez essa seja a dose necessária de ânimo pra acordar pra um novo dia.
A escola em que estudo, João Carlos Mandela, fez um favor a todos os alunos. No início do milênio, como presente de formatura para todo aluno que se formava no Ensino Médio, eles permitiam que os alunos do 3º ano de todas as turmas viessem como quisessem, sem uniforme. Por alguns anos, isso funcionou e tudo ficou muito bem. Os que não se formavam ou repetiam, bom... iam ter que usar uniforme. Daí um aluno entrou em depressão por não se formar no mesmo ano que os seus amigos, e sumiu da escola. Sentia vergonha de usar aquela roupa, diferente de todo mundo do seu mundo e, ao mesmo tempo, igual ao resto. Tentou se jogar na frente de um trem, mas foi impedido. Liberaram ele usar a roupa que quisesse. Liberaram todo mundo. Mas o cara preferiu não prosseguir naquela escola. Sua fama já estava feita, e ele pensou não poder contar mais com o apoio de ninguém. Não soube mais desse cara, não me pergunte.
Então, vamos do jeito que quisermos. Tentaram impôr o uso de uniforme escolar de novo, mas... sabe como é. Imposição de regras, viva um país livre, abaixo à ditadura... Deu abaixo-assinado e tudo. E, claro, tem motivado outras escolas a fazerem o mesmo. Incrível como a liberdade pode funcionar de várias formas e com funções diferentes.
Mas a Educação Física tem blusa padrão. E, obviamente, é proibido entrar na quadra de calça jeans. O Rogério, por não enxergar, podia, mas depois de muito tentar participar das aulas, ele resolveu dedicar sua vida a fazer outra coisa. Então seu rosto ficou estranho ao nosso ambiente. O dele e o de mais algumas pessoas. Nosso professor é rígido com várias coisas. Gostamos de chamar ele de "tiozão".
Dois tempos de Matemática, um de inglês, um de história de manhã e dois de Educação Física à tarde nos aguardava. Peguei o longboard e fui indagado por minha mãe:
- Vai sair sem comer?
Olhei pra ela. Não sabia se ria ou se chorava de medo. Estava com um chinelo na mão, maçã na outra.
- Mas não vai mesmo!
Não tinha costume de apanhar da mamãe, mas ela me bateu algumas vezes. Algumas por motivos bem inúteis. Sem comentários.
Peguei a maçã da mão dela morrendo de medo. Ela continuou me encarando.
- Tá esperando o quê? Vai se atrasar pra escola. Anda, anda, anda! - e largou o chinelo no chão pra, em seguida, calçá-lo.
Mochila com cheiro de caderno novo. Não podia esquecer o lanche básico. E lá fui eu.
A mente e o corpo pareciam mais leves, depois de tantos dias de férias de pura tensão. Perdas sem razão plausível, brigas, quase acabar com a própria vida... Um pouco de tranquilidade pairou sobre mim naqueles momentos. E, de alguma maneira, eu me sentia diferente por dentro. Parecia ruim e, ao mesmo tempo, bom. Como ter algo tentando preenchendo um espaço, mas não conseguindo completamente. Pelo menos estava tentando, eu acho.
Era o último ano, que alívio. As últimas vezes que alguém seria zoado e, se tentasse denunciar, seria mais zoado e excluído ainda. Os últimos beijos, os últimos contatos super íntimos... Dali pra frente, viraríamos adultos de vez. Como dói crescer.
O horário era cedo, mas os sorrisos estavam estampados pelos reencontros. Algumas mudaram o cabelo. Mais lindas, mais reluzentes... Alguns abraços mais calorosos que outros. Parece que só as minhas férias foram horríveis. O último dia, emocionante. Lena, com seus cabelos curtos e lisos, sempre acenando para todos, inclusive para mim. Às vezes, com seus gritos, às vezes nervosa, às vezes feliz. Estava louco pra contar quantas vezes ela ia sumir naquele ano. Ainda mais sendo ano de vestibular. Até eu sumiria de vez.
Num mar de gente, acabei esquecendo da Geléia. Ela estava mesmo na escola?
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Rascunhos
Teen FictionUm reencontro de velhos amigos, uma noite, um suicídio e uma pergunta: por que ele fez isso? E por que o que ele fez está mexendo comigo? Marcelo precisa lutar contra os pensamentos autodestrutivos não apenas seus, mas os de muita gente ao redor.