Eu nunca fiz questão de existir, não queria incomodar... Um dia, eu acho um jeito de aparecer e você notar.
Trilha do capítulo:
Precisei levar a pequena Bruna para o quarto das meninas, depois de um pequeno cochilo. Nada demais, tia Katia não sofria nenhum tipo de problema com coisas fora do lugar, isto é, se isso for um tipo de problema. Não era filha dela, mas ela se preocupava mesmo assim. Depois, lá pras quatro da manhã, eu finalmente consegui pegar num sono profundo. E aí, finalmente, eu acordei, manhã de domingo pendendo para a tarde. Uma mulher linda de vestido e bem arrumada está à minha frente, sentada, com algumas pílulas na mão. Meus óculos estão desajustados. Não demorou muito pra reconhecer a voz que chamava meu nome: a anfitriã.
— Marcelo?
Tia Katia me olhava sério. Ela fala alto, pedindo que Bruna e as amigas saiam de onde estão escondidas e vão para o seu quarto. Continuo lá, deitado.
— Bom dia.
— Bom dia. Você mexeu no meu armário ontem.
Tentava desviar o assunto procurando os óculos como um louco, mas é tarde demais. Tia Katia pega o par de lentes nas mãos e me dá.
— Melhor?
— Sim, obrigado. Se eu mexi no seu armário ontem?
— Não, não foi uma pergunta. Eu sei que você mexeu no meu armário ontem.
Ah, as pílulas... Eu devia saber que a armadilha estava armada. E agora?
— Desculpa, tia, eu pensei que algumas pílulas iam me fazer dormir...
— Algumas ou um frasco inteiro?
— Eu tomei um susto da... Bruna, e...
— Marcelo, o que você estava pensando quando foi ali?
— Já pedi desculpa.
Sentei na frente dela, depois de engrossar um pouco mais a voz. Eu tentava ignorar os olhos e os movimentos dela me seguindo a cada movimento que eu fazia: levantando, arrumando o sofá, me dirigindo até a cozinha, até saber onde eu poderia, finalmente, me esconder daquele momento constrangedor. O banheiro.
Eu queria fechar a porta, mas parecia injusto com ela. Seus olhos castanhos não queriam, exatamente, me condenar pelo que havia acontecido. Isto estava claro pra mim. Só que eu não queria falar sobre aquilo. Sinto muito. Respirei fundo e tentei me livrar mais uma vez:
— Posso ir, pelo menos, ao banheiro sozinho?
Ela olhou para baixo, respeitosamente, e ficou em silêncio. Não era minha intenção em feri-la, mas isso meio que não me importou muito. Eu não tinha feito nada errado até aquele momento. Mas ela parecia incomodada com o que houve. Pra ela não foi um susto. Foi um sinal. Ela sentiu exatamente o que eu senti com o...
Eu queria me distrair daquele pensamento inútil, e o boboca aqui esqueceu que tinha redes sociais. Que as aulas voltavam amanhã. Estava indo pro 3º ano, mas tinha chegado num nível em que a escola já estava me enjoando. Ano de formatura, de pular pra um ciclo muito pior e mortificante: a faculdade.
Sempre me falaram que vida de universitário não é lá essas coisas. Parece muito mais deprimente do que a vida em si, e o que me assustou: o índice de suicídios e pessoas que entram em depressão durante seu curso é alto. Prova disso é a Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Eu estava louco para ir pra lá, até ouvir falar que lá é onde se fica louco. Não é incomum ouvir relatos de gente que viu estudante se jogando lá do alto. Mas não dá pra botar isso na mídia. Senão quem vai querer ir pra faculdade? Quem vai querer substituir os que estão na mídia quando eles se aposentarem?
Na cabeça deles, isso é apenas uma fase. Quando a formatura chega, toda a pressão vai embora. Será mesmo?
Mamãe ligou pra casa da tia Katia perguntando de mim. Disfarçou, falou que estava tudo bem e que ele já estava indo pra casa.
— Avisa à ela que eu vou passar no mercado pra comprar umas coisas pra escola.
— Quer que vá com você, Celo? — ela perguntou do viva-voz.
— Não, mãe... não precisa não. — exclamei de longe.
Fui convidado a tomar café e almoçar, mas me contentei com um pouco de café com leite. Sabia que a conversa série mal tinha começado, e não queria que ela tivesse mais motivações pra ser continuada. Não estava com cabeça. Não queria repetir as idiotices do...
— Tem certeza que não quer almoçar?
— Não, tô de boa. Ó, pra te agradar — peguei uma maçã da mesa e comi diante dela, me levantando. — Vou pra casa depois de comprar os negócios no mercado.
— Já sabe o que comprar?
— Já... — respondi, abrindo a porta. — Vou comprar vergonha na cara pra estudar bastante, já que é ano de ENEM. Daí, vou pro mais econômico: um caderno.
— Quem vai te dar vergonha na cara de graça sou eu! — ela gritou, me fazendo arregalar os olhos. — Quer dizer... desculpa. Desculpa, eu não devia ter...
— Que isso, tia, você não tem que levar tudo tão a sério.
— É. Mas enfim, está errado! Por que só um caderno?
— Porque atualmente existe uma coisa chamada smartphone, capaz de registrar com precisão toda a matéria que está escrita no quadro. Ninguém precisa se dar ao trabalho de copiar e desenhar tudo perfeitamente...
— Só o professor, e por isso eu digo que você vai comprar mais de um caderno.
Discutimos pelo menos 5 minutos a importância de se ter um caderno físico à mão, até ela decidir me levar no mercado pessoalmente e vigiar cada passo meu. Deixou a Luma responsável pelas garotas, enquanto me acompanhava nas compras.
— Olha, eu esqueci de dizer que se eu chegar tarde, do tipo "não cheguei até às 19h", peça uma pizza ou um lanche pra você e pras meninas. — ela dizia, docilmente, enquano eu ouvia os "ahãs" da Luma do outro lado da linha. — Suas tias voltam mais ou menos às 20h pra buscar as meninas. Se comporte? Não... eu sei que você não é mais cri... Ah, desligou... na minha cara. Que gracinha.
O que era pra ser apenas uma compra de materiais escolares virou um saldão que resultou nas compras do mês da tia Katia. Claro que ela priorizou o que eu precisava pra escola. E cada vez que eu dizia: "não, não precisa!", ela insistia e colocava algo no carrinho.
— A senhora está tirando o espaço que eu ia usar pra sentar no carrinho.
— Senhora é a sua mãe — e seguíamos adiante por vários outros setores.
Ela não tocou mais no assunto dos remédios, graças a Deus. Minha mente também estava muito mais tranquila com aquela atividade tão simplória. Parecia que uma boa companhia era a chave pra qualquer conflito mental. Era capaz de te fazer esquecer que você estava pensando em sumir há algumas horas atrás. Então era eu quem impedia...?
Era estranho não estar ali com a minha mãe, mas ao mesmo tempo até que não. Eu sentia sua falta, mas tudo o que eu tinha ouvido na noite anterior parecia ter causado alguns danos dentro de mim. Ter a Tia Katia ali comigo foi como visualizar minha mãe num mundo invertido. Talvez a vida fosse até mais fácil se ela fosse minha mãe. O peso da solidão talvez nem fosse sentido tanto assim com alguém como a tia Katia como mãe.
O que é muito curioso pra mim é o quanto se fala em solidão atualmente. Na verdade, são tantos sufixos repetidos que classificam oficialmente coisas negativas que parece mais uma doença. São os "-ãos", os "-ídios", os "-istas" que mais me assustam hoje. O futuro parece que, realmente, está fadado ao fracasso. Passei a perceber isso depois de uma aula com o professor Silvio, que leciona comunicação, redação, português e interpretação textual/discussão/aceitamos todas as opiniões mesmo as mais bizarras. Não foi culpa dele, mas uma conclusão pessoal minha. Ele é do tipo que abre a roda para as discussões mais difíceis, até que todo mundo se sinta cabeça o suficiente para escrever 28 (e não 30) linhas de uma redação de vestibular. Quem enfrenta o mais difícil, mata o fácil com menos de um tiro. Foi o que aconteceu no ano passado.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rascunhos
Roman pour AdolescentsUm reencontro de velhos amigos, uma noite, um suicídio e uma pergunta: por que ele fez isso? E por que o que ele fez está mexendo comigo? Marcelo precisa lutar contra os pensamentos autodestrutivos não apenas seus, mas os de muita gente ao redor.